Eduardo Rodrigues Cruz
Para o físico e teólogo é bom que a teoria da evolução tenha dispensado a figura de um Deus criador, do contrário não haveria lugar para a fé
Por Flavia Natércia
Eduardo Rodrigues Cruz é físico, mas se tornou professor e pesquisador de teologia e ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Com isso, porém, não abandonou as ciências naturais; ele apenas as analisa sob um outro prisma. Entre seus interesses como pesquisador estão a cultura científica moderna, a história e a filosofia da ciência e a ambivalência do progresso científico. Para ele, toda a confusão entre a teologia e o darwinismo vem da mistura entre natureza, um conceito filosófico-científico, e a criação, um conceito teológico. Mas, por ser o darwinismo uma teoria de amplo espectro, não vê separação possível entre a explicação dos fenômenos naturais e a administração dos desejos e sentimentos humanos, diferentemente do paleontólogo e divulgador da ciência Stephen Jay Gould, para quem ciências naturais e religião representam dois “magistérios não-interferentes”. Por outro lado, Cruz acredita ser bom que a teoria da evolução tenha dispensado a figura de um Deus criador, do contrário não haveria lugar para a fé. No lugar do salto conjunto (consiliência) do conhecimento proposto pelo mirmecólogo Edward Osbourne Wilson, o teólogo aposta na ideia de consonância – coerência entre visões de mundo para a qual devem contribuir ciência, religião e outros “construtos humanos”–, projeto do filósofo e historiador da ciência Ernan Mcmullin. Veja abaixo a entrevista que Eduardo Cruz concedeu à revista ComCiência.
Do que tratam os conceitos de consiliência e consonância. Dentre eles o senhor aposta no segundo. Por quê?
Eduardo Rodrigues Cruz: Dois são os conceitos em pauta: o de “consiliência” (cunhado por William Whewell e recentemente utilizado por Edward Wilson; também traduzido por “concordância”), que diz respeito a diferentes processos de indução a partir dos fenômenos, e que conduzem a um modo mais abrangente de explicação; e o de “consonância”, cunhado pelo filósofo e historiador da ciência Ernan McMullin, em 1981. Este fala de duas descrições do mundo (a científica, que explica a natureza, e a teológica, que explica a criação), que reverberam mutuamente (daí a referência ao som) sem se confundir. O primeiro termo retoma o sonho empirista de uma descrição unificada do mundo, o segundo admite o limite cognitivo humano, e fala da autonomia das várias ciências em seus esforços de descrever a realidade. No fundo, são duas atitudes epistemológicas que muito tem contribuído para o avanço do conhecimento humano. O sonho da unidade das ciências vem desde o século XIX, com vários defensores e propostas, de modo geral dentro do positivismo. Este sonho tem sofrido inúmeros reveses, mas alguns cientistas mais entusiastas parecem ignorá-los. A filosofia da ciência depois de Thomas Kuhn já devia ter jogado uma pá de cal no assunto. A insistência de Edward Wilson tem assim um caráter quase religioso.
Na sua visão, de onde nasce a necessidade de grandes narrativas? Sua gênese é biológica, cultural, ocidental?
Eduardo Rodrigues Cruz: Há certamente uma raiz biológica na inclinação humana por totalidades. Essa busca, que envolve diferentes áreas, se manifesta historicamente de modos variados e os exemplos mais citados são o marxismo, o capitalismo e o nacional-socialismo. Essa manifestação histórica, é claro, ocorre em outras culturas. Onde houver mito, aí haverá uma grande narrativa.
O senhor afirmou, no artigo “Ser ou não ser consiliente”, que autores como Jacques Monod, Prêmio Nobel de Medicina (1965) que escreveu O acaso e a necessidade, e Richard Dawkins são defensores do conhecimento científico como provedor de um “realismo sóbrio” que seria o caminho para manter nossa humanidade. Mas o “realismo sóbrio” de Dawkins não teria se transformado em uma espécie de fundamentalismo darwinista ou ateu, uma escalada que começou com O relojoeiro cego até chegar a Deus, um delírio?
Eduardo Rodrigues Cruz: Se notarmos o contexto da afirmação, vemos que Dawkins concebe algum tipo de continuidade entre "é" e "deve ser", e, assim, vê uma linha de continuidade da ciência para a moralidade. É "sóbria" porque minimalista e, assim, o combate à religião se dá tanto pelo distanciamento desta com aquilo que "é" (a realidade assim como descrita pelas ciências empíricas), quanto pela profusão de normas e ritos. A proposta de Dawkins é sóbria, mas o mesmo, claramente, não se pode dizer de sua prática fundamentalista.
Em que a teologia pode entrar em consonância com o darwinismo, se esta teoria tornou dispensável a figura de um Deus criador? Há consonância possível entre, por exemplo, a noção de desígnio, de um lado, e a de acaso versus necessidade de outro?
Eduardo Rodrigues Cruz: Ainda bem que se tornou dispensável, pois de outro modo não haveria lugar para a fé! Toda a confusão repousa na mistura entre natureza e criação. Criação é um conceito teológico, no qual ela é dependente do criador. Já a natureza (um conceito filosófico-científico) dá apenas vestígios de Deus criador, como bem diz a Carta aos Hebreus, cap. 11, vers. 3: "Pela fé nós compreendemos que os mundos foram organizados pela palavra de Deus. Segue-se daí que o mundo visível não tem sua origem em aparências". Com isso, "acaso e necessidade" e desígnio são duas maneiras diferentes (mas compatíveis!) de se ver o mundo.
O senhor cita em seu artigo programas de pesquisa compatíveis com a “consonância”. Pode nos dar um exemplo?
Eduardo Rodrigues Cruz: Entre os que mais se destacam hoje são os resultantes da colaboração entre o CTNS Centro de Teologia e Ciências Naturais e o ObservatórioVaticano, que vem desde 1988 e já está em sua segunda fase. Outra que se destaca é o Projeto STOQ, envolvendo universidades romanas, e o Sophia Europa. Todos eles envolvem pesquisas interdisciplinares de alto nível. Infelizmente não há nada equivalente no Brasil.
Nessa perspectiva, como o senhor avalia o surgimento do “design inteligente” (ID)? Este se distingue em algo do relógio que pressupunha um relojoeiro de William Paley?
Eduardo Rodrigues Cruz: William Paley representava uma tradição de teologia natural, que pretendia servir apenas como suporte à teologia revelada. Já o "design inteligente" se apresenta como pura ciência, sem identificar o "agente" do plano, uma forma sofisticada, mas matreira de escapar das críticas ao criacionismo "científico". O relógio deixa de ser uma imagem sugestiva e passa (no caso do ID) a ser apresentado como "prova" de uma irredutibilidade.
A “teoria do design inteligente” pode produzir hipóteses falseáveis? E a complexidade irredutível de Michael Behe (A caixa preta de Darwin)?
Eduardo Rodrigues Cruz: Bem esta última já foi mostrada problemática por um sem número de pesquisadores. Pode produzir hipóteses falseáveis sim, e é em parte por isso que tem sido tão fácil abordá-las criticamente. O que grande parte dos cientistas ignora é que essas hipóteses também são problemáticas do ponto de vista religioso, pois reduzem Deus a uma mera inteligência organizadora.
É próprio das grandes narrativas suscitar periodicamente interpretações literais, radicais de seus textos? Por quê?
Eduardo Rodrigues Cruz: Colocando em outros termos, as grandes narrativas podem facilmente gerar ideologias, quando interesses em termos de poder entram na história. Afinal de contas, o confronto entre o "espírito" e a "letra" remonta às origens da humanidade. A letra fornece segurança ao homem, o espírito fornece criatividade.
Depois de 200 anos de teoria da evolução como avançou o debate entre as interpretações da religião e da ciência sobre a origem da vida? Podemos dizer que as discussões em cada um desses campos do conhecimento contribuíram para o avanço do outro? Por quê?
Eduardo Rodrigues Cruz: Essa é realmente uma história muito longa. Remeto os interessados ao meu ensaio "Diálogo e construções mútuas: Igreja Católica e teoria da evolução", em João D. Passos e Afonso Soares, orgs. Teologia e ciência: díálogos acadêmicos em busca do saber (São Paulo: EDUC/ Paulinas), 65-85. Que a teoria da evolução darwiniana, uma vez que se estabeleceu no âmbito científico (lembrar que isto só ocorreu no século XX), têm contribuído para a descrição do processo divino de criação, é inegável. Mais sutil é a contribuição inversa. Creio que a teologia contribui para a teoria da evolução a partir das metáforas que emergiram no ocidente cristão. Por exemplo, Darwin utilizou a imagem de Providência para caracterizar o funcionamento da seleção natural como sustentadora das espécies (com mais força na primeira edição da Origem das espécies ), e muitas outras entraram em seus escritos e no de biólogos desde então, principalmente no plano da (boa) divulgação científica. Muitos estudos têm apontado a influência de imagens que tradicionalmente têm sido analisadas pelos teólogos (ver livros de Michael Ruse a respeito).
Por que metáforas religiosas (novo Éden, Santo Graal, Livro da Vida) têm sido usadas pela mídia para abordar temas como a biodiversidade e os projetos genoma?
Eduardo Rodrigues Cruz: Só pela mídia? Esta as usa porque os próprios cientistas recorrem frequentemente a elas! Os cientistas em suas afirmações coloquiais entre si e com o grande público, recorrem (muitas vezes de modo inconsciente) a imagens profundamente enraizadas em nossa cultura. Como a ciência contemporânea trata das grandes questões da existência, é natural que imagens religiosas sempre pipoquem.
Na sua opinião, o darwinismo é, em ampla medida, aceito acriticamente? O que o darwinismo não explica?
Eduardo Rodrigues Cruz: Toda teoria que toca diretamente o humano pode gerar aceitações acríticas de todos os naipes. A web está cheia delas. É o preço do sucesso! O darwinismo não tem-fronteiras pré-definidas em termos de explicação, mas deve-se ter cuidado ao se usar a metáfora do "ácido universal" (Daniel Dennett). Não só o darwinismo compete com outras teorias científicas, em áreas afins, mas também lida com o óbvio caráter fragmentário das fontes de seus dados (p.ex., fósseis).
Como a discussão sobre a teoria da evolução pode contribuir para promover diálogos entre ciência e religião?
Eduardo Rodrigues Cruz: Em primeiro lugar, é claro, ela serve de plano de fundo comum para que cientistas e teólogos se aliem em face de ameaças como o criacionismo e o ID. Depois, lembremos que a teoria da evolução, enquanto teoria de largo alcance, vai muito além dos limites da explicação científica – ela auxilia a criar visões de mundo. Nesse sentido, questões que tradicionalmente são tratadas pelos mitos (qual a origem de tudo? Por que a natureza é assim, e qual o nosso lugar nela? Há uma alguma finalidade em todo o processo vital?), são reelaboradas e discutidas no seio desse novo paradigma evolutivo. Também há de se levar em conta o impacto dessas ideias no plano da moral, na política, na economia, etc... Descontando a atitude prometeica daqueles que se acreditam auto-suficientes na apreciação do que é verdadeiro, e na esteira disso, do que é bom e belo, os cientistas têm a aprender em como compatibilizar uma teoria que repousa sobre mecanismos cegos e indiferentes ao humano com aquilo que é sublime no homem. Quanto aos teólogos, eles podem voltar a tomar a sério os paradoxos de uma natureza que parece ter sido abandonada por Deus e que, ao mesmo tempo, é manifestação de sua glória. Além disso, eles podem voltar ao bom e velho Tomás de Aquino, que muito bem descreveu a integridade e a autonomia da natureza e seu estudo.
Fonte.