Por Maria Emília Yamamoto
O homem, distintamente de outras espécies, procura respostas a perguntas tais como a do título deste artigo e faz indagações sobre suas origens e características. Boa parte do conhecimento produzido na área das ciências humanas e sociais diz respeito a indagações como essa, sobre o comportamento e a natureza humanos. Uma das disciplinas que fornece algumas das respostas mais inspiradoras é a psicologia evolucionista. Esta é uma disciplina recente, multidisciplinar, que nasceu de uma síntese entre a psicologia cognitiva e a teoria da evolução, e que utiliza conhecimentos de várias outras áreas, como a neurociência e a antropologia. A abordagem evolutiva parte do pressuposto que o homem, assim como todos os outros seres vivos, é o produto de um processo evolutivo. Isso significa que nossa natureza é determinada, além de nossa cultura, pela nossa biologia. Nossas características, não apenas anatômicas, mas também neurocognitivas e de comportamento, foram selecionadas em respostas a pressões evolutivas durante o processo de nossa evolução.
O que são pressões evolutivas e como elas agem sobre os seres vivos? Darwin, ao propor a teoria da evolução, estabeleceu que o processo evolutivo só poderia ocorrer se houvesse variabilidade genética na população e se essa variabilidade influenciasse diferencialmente a sobrevivência e a reprodução. Aqueles que apresentam características que favorecem essas capacidades deixam mais descendentes e passam essas mesmas características adiante. Quando isso acontece ao longo de várias gerações essas características transformam-se em adaptações, que são traços, sejam eles anatômicos, fisiológicos ou cognitivos, que permitem ao indivíduo resolver da melhor maneira possível os problemas que o ambiente apresenta. É claro que o que é adaptativo em um ambiente não o será em outro; portanto, adaptação não é algo de absoluto, mas sim relativo ao ambiente em que o organismo se encontra, e pode mudar em função de variáveis geográficas, temporais e sociais (por ex., a densidade populacional, a composição etária ou de gênero da população, etc).
A relatividade temporal das adaptações está sempre presente, uma vez que um organismo que consegue sobreviver e reproduzir passa para seus descendentes as adaptações a aspectos do ambiente que estavam presentes em seu tempo de vida. Essa mesma adaptação pode passar para várias gerações seguintes, mesmo que o ambiente tenha mudado, pois as mudanças produzidas na população pela seleção natural podem levar um tempo muito mais longo do que as alterações do ambiente, que podem ser muito rápidas. Por exemplo, a agricultura e a pecuária surgiram há apenas 10 mil anos, o que em termos evolutivos é um período muito breve. Essas “novidades” evolutivas permitiram, entre outras coisas, a passagem de uma vida nômade para o estabelecimento de locais fixos de moradia e a produção de excesso de recursos, que deu origem a um crescimento dramático da população. Passamos então, muito rapidamente, para um modo de vida de caçador-coletor, caracterizado por pequenos grupos nômades, com alto grau de parentesco, para grupos urbanos em cidades superpopuladas, nas quais cruzamos todos os dias com pessoas que nunca mais veremos novamente. Esse período de 10 mil anos foi insuficiente para que várias das adaptações ao modo de vida caçador-coletor fossem substituídas por adaptações a aspectos mais recentes do meio ambiente. Podemos então dizer que somos criaturas pré-históricas vivendo em um mundo moderno e, como tal, mantemos vários traços que respondem a desafios enfrentados por nossos ancestrais em um passado distante, o Ambiente de Adaptação Evolutiva (AAE).
Quando o ambiente muda, o comportamento pode se mostrar inadequado às novas circunstâncias. Obviamente, as pressões seletivas podem levar à evolução de novas adaptações, porém, o tempo necessário para que elas evoluam é sempre muito mais longo do que o necessário para que as alterações ambientais ocorram. Em consequência, alguns dos comportamentos que exibimos estão mais bem adaptados ao AAE do que ao ambiente atual. Ao analisar o comportamento é importante considerar, portanto, não apenas as causas presentes no tempo de vida do indivíduo, ou causas próximas, mas também como nossa natureza foi moldada pelos desafios que nossos ancestrais tiveram que enfrentar, e que resultaram em uma espécie com as características que reconhecemos como humanas. Em outras palavras, somos como somos porque nossa espécie e as espécies que a antecederam superaram desafios colocados pelo ambiente que levaram à modelagem da natureza humana, e porque com essa mesma natureza básica hoje enfrentamos um ambiente em grande parte diferente daquele no qual ela foi moldada.
Porém, nosso comportamento parece tão distinto do de nossos ancestrais que é difícil aceitar que somos de fato os mesmos. Na realidade, somos o produto de nossa biologia tanto quanto o somos de nossa cultura. A espécie humana, talvez mais do que qualquer outra espécie, apresenta uma incrível plasticidade comportamental que é considerada um dos padrões mais importantes na história da evolução humana e que responde por essa incrível diversidade entre as várias populações humanas.
Vou discutir dois exemplos que mostram o efeito conjunto do ambiente e das experiências pessoais, aí incluída a cultura, na expressão do comportamento e a manutenção de traços selecionados em nosso passado evolutivo, evidenciando o descompasso temporal mencionado acima.
Neofobia e neofilia: o que comer?
A vida humana, como a dos animais, gira, em grande parte, em torno da alimentação. Obter alimentos e comê-los era, provavelmente, uma atividade de alto custo para nossos ancestrais, pelo tempo que ocupava e pelos riscos envolvidos. Durante a maior parte da evolução humana, nossos ancestrais, como qualquer animal selvagem, tinham que sobreviver daquilo que conseguiam retirar da natureza. Quanto os nossos corpos e mentes foram transformados pela mudança de um ambiente ancestral para outro moderno? No ambiente ancestral (o AAE, já discutido anteriormente), alimentos potenciais eram raros e perigosos, animais e plantas apresentavam defesas químicas, mecânicas e comportamentais desenvolvidas para não sofrer predação. Em contraste, atualmente a alimentação deixou de ter um caráter puramente nutricional e passou a ser vista como culinária e/ou gastronomia, onde o mais importante não é necessariamente a presença de alimento, mas sim o ambiente de degustação, o aparato de apresentação, o prestígio do local. Certamente, mudamos muito. Porém, surpreendentemente, ainda carregamos em nossos genes hábitos que eram adaptativos às demandas apresentadas pelo ambiente ancestral e que hoje, diante das alterações das condições de vida, não mais o são.
Nosso aparato sensorial, herança de nossos ancestrais, nos prepara para lidar com os alimentos disponíveis no ambiente. Nossas predisposições em preferir alguns sabores em relação a outros, foi moldada em um ambiente de adaptação evolutiva. Não respondemos apenas aos sabores – respondemos à familiaridade que temos com os alimentos. Não por acaso, cada cultura tem sua culinária típica, que é um dos padrões mais duradouros quando há mudança de ambiente. Grupos étnicos que se mudam para outro local ou país mantêm suas tradições culinárias mesmo quando outros aspectos são abandonados em favor daqueles presentes no novo local. A relutância em experimentar alimentos novos é chamada pelos nutricionistas de neofobia alimentar, assim como a predisposição em aceitar alimentos novos é chamado de neofilia alimentar.
A neofobia e a neofilia alimentar provavelmente trouxeram vantagens adaptativas a nossos ancestrais. Ampliar a variabilidade na composição da dieta significava aumentar as chances de encontrar alimentos, mas ser cauteloso com um alimento desconhecido significava evitar ingerir algo tóxico ou prejudicial à saúde. Isso coloca um dilema a todas as espécies que são onívoras (que têm uma dieta ampla e diversificada), e que nos acompanha, como espécie onívora que somos, até hoje. O pesquisador canadense Paul Rozin chama este fenômeno de dilema do onívoro, que se estabelece quando um indivíduo tem boas razões tanto para aceitar (ampliação da dieta) quanto para rejeitar (possibilidade de envenenamento ou intoxicação) alimentos novos.
Ao longo da evolução, vários mecanismos se desenvolveram para lidar com esse dilema, de modo a permitir a incorporação de alimentos novos e, ao mesmo tempo, tentar diminuir os riscos. Embora, no ambiente moderno, os riscos envolvidos na incorporação de novos alimentos sejam muito pequenos, conservamos tanto a relutância relativa aos novos alimentos quanto os mecanismos de facilitação de sua aceitação.
O mais simples desses mecanismos deriva-se de nosso aparato sensorial, que responde diferencialmente aos diferentes gostos. Desde muito cedo mostramos preferência pelos gostos doce e salgado e rejeição aos azedo e amargo. Essas preferências provavelmente protegeram nossos ancestrais, pois alimentos que contêm substâncias tóxicas em geral têm gosto azedo ou, mais frequentemente, amargo.
Outro mecanismo, este exclusivamente humano, é o chamado princípio do sabor. Esse procedimento consiste em adicionar familiaridade a alimentos desconhecidos ou exóticos através do uso de condimentos característicos de uma cultura. Esse princípio dá a um alimento novo um “certificado de segurança” e fornece uma solução cultural ao dilema do onívoro, compatibilizando a disponibilidade de alimentos com a predisposição de aceitar o que é conhecido, característico do seu humano.
Outro fator que parece influenciar os padrões alimentares é a presença de outras pessoas. Uma refeição é um evento social e a presença de outros pode aumentar a probabilidade de aceitação de alimentos novos, fato que vem sendo chamado na literatura científica de facilitação social. Estudos encontraram uma correlação positiva entre número de pessoas durante uma refeição e a quantidade de alimento ingerido, ou seja, quanto maior o número de pessoas durante uma refeição, maior a quantidade de alimento ingerido pelas pessoas. Esse mecanismo funciona com incentivos explícitos, por exemplo, quando são emitidas opiniões sobre os alimentos sendo oferecidos, como também através do modelo, pois mesmo quando não são emitidas opiniões, a simples presença de outras pessoas se alimentando favorece a ingestão de novos alimentos. Novamente, o grupo social age como garantia da qualidade do alimento, o que provavelmente foi um indicador importante para nossos ancestrais. O que outros comiam sem consequências danosas poderia ser incorporado à dieta com segurança.
Quando somamos nossas predisposições genéticas na preferência pelos gostos básicos às características ambientais e culturais chegamos a uma complexa rede de influências sobre o comportamento alimentar moldada pelo processo evolutivo.
Porém, atualmente, novas preocupações – que nunca estiveram presentes em nossos ancestrais – nos perseguem: o sobrepeso e a obesidade. Especialmente na sociedade ocidental há alimentos em excesso. Desses, parecemos preferir aqueles que são gordurosos e doces, exatamente aqueles que os médicos nos sugerem evitar. Infelizmente, assim como herdamos preferência pelos gostos básicos, também herdamos de nossos ancestrais um grande apetite, especialmente por alimentos gordurosos e doces. No ambiente no qual nossos ancestrais viveram, esses tipos de alimento eram escassos ou os nutrientes eram pouco concentrados nos alimentos disponíveis. Por essa razão, nossos ancestrais gastavam grande parte do tempo à procura de alimentos para suprir as necessidades de gorduras e açúcares e, quando os encontravam, provavelmente consumiam em grande quantidade; afinal, não podiam prever quando os encontrariam novamente. Além disso, a própria atividade de procura de alimento e a vida nômade faziam desse nosso ancestral um indivíduo extremamente ativo, ao contrário do sedentarismo da moderna vida urbana. Respondemos ao alimento e à atividade física como se vivêssemos em um mundo com escassez de alimentos ricos em gorduras e açúcares e com exigência de altos níveis de atividade física. Resultado: excesso de peso.
Tendo em vista esse grande apetite herdado e a disponibilidade de alimentos durante todo o ano, processados de forma a se tornarem mais saborosos (com maior concentração de açúcares e gordura), não é de estranhar que o problema de sobrepeso tenha adquirido grande destaque em nossa sociedade. Com os alimentos disponíveis conseguimos suprir nossa necessidade diária de nutrientes e ingerimos facilmente mais do que precisamos. No passado evolutivo, nossos ancestrais enfrentaram problemas de saúde pela falta de gordura e açúcares na dieta. Hoje, enfrentamos problemas de saúde pelo excesso de gordura e açúcares.
Porém, neofilia e obesidade estão relacionadas? Não necessariamente. Neofilia e neofobia dizem respeito à diversidade da dieta, não à quantidade de alimentos ingeridos. Neofóbicos regulam o que comem, não o quanto comem. Dessa maneira, um indivíduo pode comer muito de alguns poucos itens alimentares (neofóbico) enquanto outro pode comer pouco de uma quantidade muito variada de alimentos (neofílico). Então, pode-se observar um obeso que assim o é por comer quantidades exageradas apenas de feijão com farinha, ou por comer uma diversidade de alimentos de todas as partes do mundo, também em quantidade exagerada.
Cooperação e coalizão de grupo: o círculo virtuoso
Nos vários jogos sociais aos quais somos chamados a participar, na vida cotidiana, nosso maior problema é atrair o parceiro certo. Uma vez identificado, um parceiro confiável pode vir a se tornar um parceiro frequente e levar à exclusão dos parceiros que preferem não cooperar. Por exemplo, preferimos escolher para uma atividade conjunta no trabalho ou na escola aqueles que sabemos, em geral por experiência anterior, que não se negam a trabalhar duro e que não fazem “corpo mole”. Estes podem ser chamados de virtuosos, que assim agem porque isso lhes permite somar forças com outros, também virtuosos, em benefício de todos os virtuosos. É o que eu chamo do círculo virtuoso.
Nossos ancestrais caçadores-coletores formavam grupos extremamente pacíficos e igualitários. No entanto, a análise da vida de caçadores-coletores modernos, como os que ocorrem na Nova Guiné, mostra que a taxa de morte por homicídio é muito maior da que ocorre nas sociedades urbanas ocidentais modernas. A aparente contradição se explica pelo fato de que esses homicídios têm lugar, fundamentalmente, nas disputas entre grupos. A pressão evolutiva pode jogar grupos contra grupos e, na espécie humana, dar origem ao conhecido nós versus eles. Como isso acontece?
Ruth Mace, uma pesquisadora do College of London, sugere que as próprias culturas levantam barreiras ao movimento de pessoas e ideias, mesmo hoje em dia. Embora isso tenha sido muito atenuado em função das facilidades de transportes e de comunicação, durante a evolução humana a proteção do grupo era crucial. Historicamente, grupos não apenas desempenhavam tarefas de forma cooperativa, mas também protegiam seu território contra outros grupos humanos. Dessa forma, era importante reconhecer os que pertenciam ao grupo e desconfiar de estranhos. Uma das formas de fazer isso é identificar indivíduos que são aliados ou que pertencem a um determinado grupo. Há várias maneiras de fazer tais identificações, como a distribuição espacial (quem anda com quem), a linguagem ou mesmo o sotaque, o vestuário e outras características comuns.
Essa identificação permite, por um lado, a cooperação intra-grupo e, por outro lado, a alienação e a hostilidade aos que não pertencem ao grupo. Ridley (2000) cita a análise que John Hartung faz da frase judaico-cristã “ama teu próximo como a ti mesmo”, que conclui que a frase foi cunhada, por Moisés, em um momento de grande desavença entre os israelitas. O objetivo era unir o grupo, e próximo refere-se especificamente aos filhos do povo, ou seja, aos outros israelitas. Exortações à moralidade e à cooperação são dirigidas ao grupo de pertinência, visam aumentar a coesão do grupo e, dessa forma, torná-lo mais forte na competição contra outros grupos.
Grupos étnicos têm rituais e padrões que os tornam facilmente identificáveis. O conceito de raça, ou subespécie, no entanto, foi completamente desmantelado pela biologia evolutiva. As dificuldades que se apresentam para a classificação de indivíduos polimórficos, de populações extremamente variáveis, em tipos bem definidos, são enormes. Nós brasileiros, por exemplo, que vivemos em uma sociedade com alto grau de miscigenação, temos muitas dificuldades de classificar as pessoas em função de sua etnia, principalmente aqueles indivíduos que representam a mistura de várias etnias. Consequentemente, os biólogos evolucionistas não consideram raça um conceito que vale a pena ser empregado. No entanto, isso não impede que as pessoas, intuitivamente, julguem que a categorização de pessoas em função principalmente da cor da pele é tarefa simples. Obviamente, essa crença não se baseia no conceito biológico de raça –frequentemente, a avaliação feita pelo olho humano não informado é um guia pouco fidedigno quanto ao grau de diferenciação biológica. Porém, é essa base pouco segura no que diz respeito às relações raciais, dando origem, no pior dos casos, a preconceito e discriminação e, em outros, à identificação de pretensas características raciais.
No entanto, a categorização do mundo em nós versus eles deu origem a alguns dos mais terríveis conflitos na história da humanidade, como é o caso de Kosovo, Ruanda ou o Holocausto. Pesquisas mostraram que o etnocentrismo, o favorecimento de seu próprio grupo e a indiferença ou hostilidade em relação a grupos externos, existe em todas as culturas. Esses estudos sugerem que: a) a cooperação intra-grupo e a competição inter-grupo são fáceis de provocar; b) a cultura do nós versus eles é universal e é desencadeada por alguns tipos de situações sociais; c) a pertinência a um ou outro grupo pode mudar rapidamente.
Um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, liderado por Leda Cosmides, examinou essas questões à luz de um problema que é especialmente aflitivo para nós, o preconceito racial. Estes autores apresentaram, a dois grupos de sujeitos, situações nas quais havia um conflito entre grupos rivais, com combinações raciais semelhantes entre seus componentes, isto é, os grupos eram compostos de números iguais de brancos e negros. A apresentação do conflito se dava através do relato daquilo que os indivíduos falavam. Porém, em uma das situações, todos os indivíduos vestiam camisetas de mesma cor; na outra situação os indivíduos do mesmo grupo vestiam camisetas da mesma cor, mas os dois grupos vestiam camisetas de cores diferentes. Dessa maneira, era fornecido um segundo identificador da pertinência ao grupo, além daquilo que os indivíduos falavam. A situação experimental consistia em um teste no qual o participante tinha que se lembrar quem, entre indivíduos que supostamente pertenciam a dois times de basquete, havia dito uma determinada frase. Essa era uma tarefa difícil porque havia muitas frases para serem lembradas; consequentemente, havia muitos erros. O que interessava ao grupo de pesquisadores era o tipo de erro cometido. Os participantes podiam confundir indivíduos que tinham a mesma cor de pele, mas que pertenciam a grupos diferentes, o que indicava que o critério de codificação era apenas a cor da pele; podiam confundir indivíduos que tinham a mesma cor de pele, mas pertenciam a grupos diferentes, o que indicava que o critério de codificação era duplo, a cor da pele e a pertinência ao grupo; e podiam confundir indivíduos que não tinham a mesma cor de pele, mas pertenciam ao mesmo grupo, o que indicava que o critério de codificação era apenas a pertinência ao grupo; finalmente, os participantes podiam confundir indivíduos que não tinham a mesma cor de pele e nem pertenciam ao mesmo grupo, o que indicava apenas um erro de memória. Os erros do grupo exposto à primeira condição (camisetas da mesma cor) eram em sua maioria erros de codificação nos quais confundiam indivíduos de uma cor de pele com outro indivíduo com a mesma cor de pele. Por outro lado, o grupo exposto à segunda condição (camisetas de cores diferentes) cometeu muito menos erros de codificação relativos à cor da pele e mais erros relativos à codificação da pertinência ao grupo. Isto é, para o segundo grupo a cor da pele foi um critério que perdeu importância na identificação de quem pertencia a qual grupo. Foi possível demonstrar, através de um procedimento chamado de protocolo de confusão de memória, que a codificação de raça podia ser diminuída, e até eliminada, no segundo caso, reforçando a ideia que a raça serve como um indicador de pertinência ao grupo na ausência de outros indicadores mais claros, no caso, a cor da camiseta.
A partir desses resultados os pesquisadores propuseram que a codificação de raça era uma expressão de uma psicologia subjacente de alianças: um conjunto de programas mentais típicos da espécie que evoluiu para regular a cooperação intra-grupo e o conflito entre grupos no mundo desaparecido de nossos ancestrais caçadores-coletores. Se isso estiver correto, então a codificação racial pode não ser inevitável, como proposto por vários psicólogos. Ao invés disso, a tendência a categorizar os indivíduos pela sua raça pode ser um efeito colateral, altamente volátil e mutável, de programas cuja função adaptativa é detectar mudanças em alianças e coalizões. Uma implicação desse ponto de vista é que a codificação racial irá diminuir sempre que: (i) houver um conflito entre grupos rivais; (ii) a raça não for um preditor da pertinência de grupo, e (iii) outras pistas, facilmente detectáveis forem preditores de pertinência (por exemplo, cor da camisa, crachás, time de futebol, etc).
Cosmides e colaboradores propõem que as pesquisas relatadas acima sugerem quatro conclusões: a) a mente humana possui uma característica universal que consiste em um conjunto de programas específicos da espécie, que evoluíram para regular a cooperação intra-grupo e o conflito inter-grupo em nosso ancestrais caçadores-coletores; b) quando ativados, esses programas levam as pessoas a avaliar situações que envolvem grupos rivais (nós versus eles) favoravelmente aos grupos de pertinência (nós) e contra grupos externos (eles); c) um sub-conjunto desses programas representa uma especialização para a detecção de alianças (quem está aliado a quem); d) categorias raciais e étnicas consistem um sub-produto desses mecanismos de identificação de alianças e podem ser facilmente erradicadas. A seleção natural nos dotou com mecanismos psicológicos que nos permitem identificar rapidamente indivíduos como pertinentes ao nosso grupo ou a outro grupo, e essa codificação dirige nosso comportamento. Somos, portanto, animais sociais que favorecem seu grupo porque o fortalecimento do grupo, o círculo virtuoso, beneficia cada um dos indivíduos que pertencem a ele. Porém, esses mecanismos psicológicos são afetados pelas experiências que temos ao longo da vida. Comparamos participantes de sete estados brasileiros, que apresentavam diferentes composições raciais de sua população (de acordo com os dados do censo), através do mesmo procedimento utilizado por Cosmides e verificamos que os estados com uma maioria de pardos mostraram um decréscimo mais acentuado na codificação de raça na condição em que havia uma diferença entre os grupos (camisetas de cores diferentes). Aparentemente, a exposição a um ambiente no qual há maior integração racial diminui a importância da raça na identificação de pertinência a um grupo.
Considerações finais
Vimos como nossa mente foi moldada ao longo do processo evolutivo para tomarmos decisões sobre coisas tão diversas como o que comer ou com quem cooperar. Esse tipo de pensamento, evolucionista, tem frequentemente sido associado com determinismo genético, isto é, com a ideia que o comportamento é controlado exclusivamente pelos genes, sem haver espaço para influências ambientais. Isso fica evidente quando se fala em gene para um comportamento ou traço como, por exemplo, o “gene do homossexualismo” ou o “gene da obesidade”. Afirmações como essas são, é claro, bobagens. Os genes não determinam nosso comportamento, antes fornecem os mecanismos que nos permitem apreender informações do meio. A observação do desenvolvimento de crianças é talvez o exemplo mais fascinante dessa interação biologia-meio ambiente. Recém nascidos respondem ao seu meio de forma seletiva, prestando mais atenção e respondendo aos estímulos que fazem mais sentido do ponto de vista evolutivo, isto é, que lhe permitirão se adaptar e aprender ao ambiente no qual irão viver. É o caso da linguagem e de outros estímulos sociais. Isso sugere que o bebê já nasce equipado para interagir de forma diferencial com seu meio e a aprender aquelas habilidades que serão importantes para a sua integração à cultura na qual nasceu: que língua falar, que alimentos comer, com quem interagir e cooperar.
A oposição do biológico ao cultural está baseada, fundamentalmente, em duas falácias a respeito das características genéticas: que elas são invariáveis e que não são influenciadas pelo ambiente. Na realidade, a biologia (ou os genes ou o instinto) estabelece os limites da aprendizagem, marca as fronteiras da flexibilidade, ou, como gostamos de dizer em psicologia, delimita a amplitude das diferenças individuais. O ser humano demonstra, por sua natureza biológica, extrema plasticidade comportamental. Por outro lado, também por natureza, é social. A combinação da plasticidade com a sociabilidade (que é de fundo biológico, pois faz parte da natureza humana) resulta em diferenças individuais, sociais, culturais. Nem por isso deixamos, cada um de nós, apesar de nossas diferenças, de ser humanos.
Maria Emília Yamamoto é professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ligada ao Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia, e coordena o Projeto do Instituto do Milênio em Psicologia Evolucionista.
(*) Artigo originalmente publicado na revista Ciência Sempre, Vol. 4, p.12-17, 2008.
Para saber mais:
- Número especial da revista Psique sobre psicologia evolucionista, ano II, no. 6, 2007.
- Pinker, S. O instinto da linguagem. São Paulo, Martins Fontes. 2002.
- Rose, M. O espectro de Darwin. Rio de Janeiro, Zahar. 2000.
- Wright, R. O animal moral: porque somos como somos: a nova ciência da psicologia evolucionista. Rio de Janeiro, Campus. 1996.
Fonte.