Dinâmica da síndrome pulmonar
22/4/2009
Por Thiago Romero
Agência FAPESP – Pesquisadores da Rede de Diversidade Genética de Vírus (VGDN), em trabalho publicado no Emerging Infectious Diseases, apresentam fortes evidências de que o Hantavírus Araraquara, comum no interior de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e no Distrito Federal, é mais letal do que os hantavírus encontrados em todas as outras regiões do país.
A Síndrome Pulmonar por Hantavirus (HPS, na sigla em inglês), ou hantavirose, é um problema de saúde crescente no Brasil devido à expansão urbana, agrícola e de gado em ecossistemas que contêm espécies de roedores da subfamília Sigmodontinae, que servem como reservatórios do hantavírus. Existem aproximadamente 540 espécies conhecidas de roedores Sigmodontinae.
De acordo com o trabalho, o Hantavírus Araraquara está associado a áreas que têm sofrido maiores mudanças antropogênicas devido ao crescimento desorganizado da população.
Estudo de pesquisadores brasileiros, publicado no Emerging Infectious Diseases, mostra que o Hantavírus Araraquara, causador da hantavirose, comum no interior de São Paulo, pode ser o mais letal do país (foto: Partículas de Hantavírus/Divulgação)
Os pesquisadores identificaram os principais vírus causadores de hantaviroses que circulam em uma área delimitada no Brasil e, com base na distribuição geográfica desses vírus e no pressuposto de que nenhuma outra linhagem desconhecida estaria afetando os seres humanos, eles sugerem que o Hantavírus Araraquara seja responsável por 80% dos casos de hantavirose notificados no Brasil.
“Tudo indica que o Hantavírus Araraquara é o mais virulento do Brasil por ter um nível de letalidade muito alto. Agora é muito importante comprovarmos se isso ocorre por ele estar colonizando muito rapidamente diferentes espécies de roedores no país”, disse o virologista Paolo Zanotto, um dos coordenadores do trabalho e professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), à Agência FAPESP.
Para chegar a tais conclusões e compreender a prevalência do Hantavírus Araraquara no território nacional, o estudo cobriu a biogeografia dos hantavírus em uma área de 2,5 mil quilômetros quadrados no Brasil, onde foram coletadas amostras de anticorpos para hantavírus de 89 seres humanos e de 68 roedores.
O ácido ribonucleico (RNA) foi isolado de amostras de soro humano e do tecido pulmonar dos roedores para, em seguida, serem analisados por transcrição reversa por meio da técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR, na sigla em inglês).
As sequências dos genes e proteínas de 22 indivíduos e 16 roedores indicaram a presença de linhagens do Hantavírus Araraquara, além de a taxa de letalidade por hantavirose ser maior nas áreas que apresentaram o vírus. De 1993 a 2007, um total de 877 casos de hantavirose foram notificados no Brasil, com uma taxa de letalidade de 39%.
Roedores dispersos
Segundo Zanotto, que é um dos coordenadores gerais da VGDN, outro importante avanço do estudo está justamente nas implicações dessas descobertas, uma vez que um terço dos mamíferos existentes em todo o mundo é roedor e dois terços deles vivem na América do Sul.
“Nossos dados atuais corroboram outros publicados no Journal of Molecular Biology and Evolution em 2007 e mostram que, ao contrário do que se acreditava, os hantavírus evoluem muito rapidamente, como os demais vírus de RNA. Isso implica na possibilidade de novas espécies de roedores estarem sendo colonizados por hantavírus nos últimos 200 anos, o que é um problema porque devem existir muitas outras espécies sendo colonizadas recentemente”, aponta o pesquisador.
Essa tese é suportada, segundo ele, pela detecção durante o estudo de um grupo de infecções (cluster de transmissão) em humanos da doença nas proximidades de Ribeirão Preto, no interior paulista, possivelmente associados com o roedor Akodon SP, que não é o reservatório natural do Hantavírus Araraquara e que está associado a casos de hantavirose na Argentina.
“Esse evento de mudança de hospedeiro, de Necromys para Akodon em Ribeirão Preto, é recente e provavelmente ocorreu há menos de 20 anos”, calcula Zanotto, com base em estimativas da divergência entre as sequências genéticas virais.
Para ele, esses trabalhos são muito relevantes e possibilitam explicar o aumento da virulência das hantaviroses. “Estamos começando a compreender melhor a história natural dessa virose emergente e poderemos agora enfocar alguns dos aspectos relevantes para a transmissão homem-homem, como a que foi vista recentemente na Argentina, o que pode ser facilitado pela alta taxa de mutação do vírus e o potencial de invasão de novas espécies de roedores”, explica o virologista.
De acordo com o estudo que acaba de ser publicado no Emerging Infectious Diseases, na América do Sul as hantaviroses já foram relatadas na Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Venezuela e Brasil, sobretudo nas cidades de Araraquara e Juquitiba, no interior de São Paulo.
“As adaptações do vírus que facilitam a transmissão homem-homem são a grande preocupação atual com relação ao hantavírus, o que pode se transformar em um problema desastroso devido à alta letalidade dessa virose”, disse o professor.
Segundo ele, ainda que o número de óbitos de seres humanos por hantavirose seja esporádico e não seja significativo em todo o mundo, é preciso entender melhor o problema para a elaboração de estratégias adequadas de prevenção e controle da doença.
“A maior parte das doenças virais humanas problemáticas, a exemplo do HIV, eram zoonoses [doenças de animais] que começaram a testar a malha de transmissão humana. Precisamos atuar de maneira pró-ativa junto às doenças emergentes que são negligenciadas. O HIV poderia não infectar atualmente 40 milhões de pessoas em todo o mundo se, em 1950, nós tivéssemos detectado e entendido melhor essa doença”, conta o virologista.
“Calcula-se que, a cada caso sintomático de hantavirose notificado, existam dezenas de casos assintomáticos da doença de pessoas que já tiveram algum contato com o vírus. E nossos estudos sugerem a possibilidade de o hantavírus estar colonizando o maior reservatório de roedores do planeta, que está na América do Sul”, alerta.
Paolo Zanotto salientou o esforço dos demais pesquisadores que assinam o artigo e que, segundo ele, desempenharam papel de fundamental importância no trabalho, em especial Luiz Tadeu Figueiredo, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), e Luiz Eloy Pereira, do Instituto Adolfo Lutz, entidade que faz a vigilância de hantavírus no Estado de São Paulo.
“A colaboração desses e outros pesquisadores foi essencial para que esse trabalho acontecesse. O trabalho do Luiz Eloy, por exemplo, que ficou responsável pela coleta das amostras analisadas no estudo, foi fundamental e serviu de base para todos os resultados apresentados, enquanto o professor Luiz Tadeu organizou a interação entre o Adolfo Lutz e a VGDN”, explica.
Para ler o artigo Hantavirus Pulmonary Syndrome, Central Plateau, Southeastern, and Southern Brazil, publicado no Emerging Infectious Diseases, clique aqui.
Viral Genetic Diversity Network
Lançada em 2000 como decorrência do Programa Genoma FAPESP, a Rede de Diversidade Genética de Vírus, ou VGDN na sigla em inglês, é formada por dezenas de laboratórios espalhados pelo Estado que estudam as variedades genéticas de vírus.
Para montagem e treinamento da rede foram estudadas as variedades genéticas de quatro vírus: HIV-1, tipo de vírus da Aids mais comum no Brasil; o HCV, agente causador da hepatite C; o hantavírus, que provoca a síndrome pulmonar; e o vírus respiratório sincicial, responsável por infecções no trato respiratório.
A VGDN se concentra na classe de microrganismos que abriga os menores agentes causadores de processos infecciosos de que se tem notícia. Apesar de terem um genoma pequeno, estudá-los é fundamental para entender a diversidade entre as cepas e as suas mutações.
Além de serem organismos com estruturas genéticas instáveis, os quatro vírus do projeto têm características em comum, fato que pesou na sua escolha como objeto de estudo da VGDN: todos causam doenças com alto grau de letalidade, para as quais ainda não há vacinas.
Ao capacitar laboratórios de várias cidades de São Paulo a lidar com vírus, a VGDN persegue ainda o objetivo de dotar o Estado de um conjunto de laboratórios que, no futuro, poderão ser utilizados de forma permanente e corriqueira pela Secretaria de Estado da Saúde.
Mais informações sobre a Rede VGDN: www.lemb.icb.usp.br/vgdn/www.