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quarta-feira, abril 15, 2009

Em uma longa viagem, Darwin compreendeu o princípio básico de evolução dos seres vivos e deixou, para as gerações futuras, uma obra que vai além da origem da vida.
Por Vera N. Solferini

A origem das espécies, de Charles Darwin é, talvez, a obra que mais influenciou a produção intelectual a partir de sua publicação em 1859. E não se trata de exagero fazer tal afirmação, uma vez que não somente a biologia, mas outras ciências foram profundamente influenciadas pelos estudos do naturalista inglês.


Para tentar avaliar a dimensão da obra, podemos divagar sobre o que teria acontecido se ela nunca tivesse sido escrita. A biologia sem dúvida seria diferente. Também a política e a psicologia, pois O capital não teria sido escrito, uma vez que Karl Marx e Friedrich Engels foram influenciados pela leitura de A origem das espécies, assim como foi Sigmund Freud, que iniciou suas pesquisas inspirado na obra de Darwin. Todas as formas de manifestação científica, cultural ou artística ocidentais de alguma maneira foram influenciadas por este livro. Começa a ficar difícil, se não impossível, o exercício de imaginar a nossa cultura sem A origem das espécies.

Claro que sempre há o argumento válido de que a ciência inevitavelmente levaria à teoria evolutiva – tanto que Alfred Russel Wallace também chegou, simultaneamente, às mesmas conclusões que Darwin. Mesmo assim, é difícil conceber que o trabalho de Wallace pudesse ter o mesmo impacto.

Isso porque o que fez deste um livro tão especial é, em primeiro lugar, o seu autor. Darwin era um estudioso detalhista, meticuloso, obsessivo, determinado, consciente das consequências de sua teoria e por elas atormentado. A viagem do navio Beagle durou quase 5 anos (1831-1836). Durante esse período, Darwin passou por diversos continentes e, só depois de duas longas décadas de trabalho e árduas reflexões, publicou o que seria “uma versão reduzida” de sua obra. Nela, cada tópico foi apresentado com inúmeros exemplos, evidências, resultados de experimentos e trocas de ideias com outros cientistas. Cada conceito foi incansavelmente desenvolvido de modo a não haver possibilidade de interpretações dúbias. Embora na sua época a ideia de um mundo biológico dinâmico, com espécies mudando ao longo do tempo geológico, não fosse bem uma novidade, A origem das espécies trouxe, como todos sabem, a proposta de um mecanismo para explicar tais mudanças: a seleção natural. Essa foi a novidade: por ação da seleção natural as espécies se modificam ao longo do tempo e podem formar novas espécies.

Darwin começa o livro discorrendo sobre a variação nas espécies domesticadas e sobre hereditariedade, cujas leis lhe eram desconhecidas. Ao estender o conceito para os organismos selvagens, ele discute o significado da variação geográfica, as dificuldades com os conceitos de espécie, de subespécie e de variedade (para ele pouco importa o nome que se dê a um “conjunto de formas duvidosas”). O capítulo III desenvolve a ideia de “luta pela sobrevivência”, mas além da competição inter e intra específicas também aborda as relações complexas entre animais e plantas. Não dá para apresentar todos os conceitos que surgem ao longo do livro, mas vale ressaltar que inúmeros aspectos da biologia dos organismos foram considerados como, por exemplo, anatomia comparada, comportamento, embriologia, registro geológico e distribuição geográfica (que hoje tem o nome de biogeografia). Darwin também enfatiza o surgimento, ao acaso, da variação e o papel da reprodução sexuada, mantendo a coesão das espécies, e do isolamento geográfico, promovendo a formação de novas espécies. Em resumo: Charles Darwin abordou inúmeros conceitos importantes da biologia, embora tenha ficado famoso por suas teses mais polêmicas, sobretudo por apontar nosso parentesco com os demais primatas.

Hoje em dia, é difícil encontrar quem não conheça tais ideias. A teoria da evolução, a seleção natural, a sobrevivência do mais forte, dentre outras, são expressões frequentes nos mais diversos ambientes. Foram inclusive distorcidas e utilizadas como explicações pseudo-científicas para justificar atos de discriminação racial e injustiça social, sob o nome de “darwinismo social”. Mesmo hoje, seu nome é invocado por alguns fundamentalistas para fomentar a polêmica discussão “você acredita em Deus ou em Darwin?”, numa tentativa de desacreditar e enfraquecer a teoria evolutiva, fortalecendo o criacionismo.

Polêmicas à parte, na biologia, nada faz sentido senão à luz da evolução. É a teoria evolutiva que unifica o conhecimento biológico ao considerar os organismos atuais como resultado de um longo processo de evolução orgânica a partir de um único ancestral comum.

Considerando tudo isso, a importância de A origem das espécies e o fato de ser uma obra muito citada, é surpreendente perceber que trata-se de um livro que quase ninguém leu. Entenda-se que o fato de somente “alguns terem lido” é, no mínimo, decepcionante – pelo menos entre biólogos e estudantes de biologia. Mas talvez isso não seja completamente por acaso.

O livro de Darwin não é exatamente o tipo de texto que prende o leitor jovem. Não é um livro de ação, ou suspense; não tem efeitos especiais e a maioria das edições não vêm ilustradas. Em resumo: a primeira vista pode parecer muito chato. Sem paciência para ler, mas consciente de que o deveria ter feito, a pessoa se apropria de alguns chavões e sequer tem coragem de iniciar a empreitada.

Foi tentando estimular a leitura da A origem entre alunos de graduação que percebi que basta um pouco de orientação e de motivação para as páginas começarem a virar. Apreciar este livro envolve conhecer seu momento histórico e entender a organização de seus capítulos; aos poucos vamos descobrindo que a “chatice” é, na verdade, característica de um autor metódico, incansável na explicação de suas ideias e que esmiúça os assuntos detalhadamente. Cada capítulo começa com um sumário e a maioria se encerra com um resumo, o que facilita bastante a compreensão quando o texto torna-se muito extenso. Muitas vezes é o resumo que motiva a retomada do texto.

Ler A origem das espécies é uma constante surpresa. É descobrir que há muito mais neste livro do que a famosa seleção natural. É descobrir, por exemplo, que a propalada controvérsia “darwinismo-lamarckismo” não faz sentido da maneira como é apresentada, pois ainda que Darwin não concordasse com algumas propostas de Lamarck (como o surgimento constante das formas mais simples por geração espontânea) ele aceita “uso e não-uso” atuando nas mudanças morfológicas.

Outro ponto importante que fica claro para quem leu a A origem é que nem todas as características de um organismo estão sujeitas à ação da seleção natural. Isso pode soar muito estranho para quem procura uma explicação adaptativa em tudo, mas pode ser muito interessante para quem consegue ver Darwin ressaltar a utilidade das características sem importância fisiológica para a classificação dos organismos (hoje, as hipóteses filogenéticas são construídas a partir de caracteres neutros, por exemplo).

A leitura da obra A origem das espécies hoje não deixa de ser um exercício de humildade. De perceber que a maioria das questões evolutivas, sobre as quais trabalhamos atualmente, de algum modo, foram notadas por Darwin. Trabalhar a leitura da A origem com os alunos tem me trazido muita satisfação. Uma vez quebrada a resistência inicial muitas descobertas vão sendo feitas. É uma leitura indispensável para o biólogo, mesmo quando ele se concentra apenas na evolução orgânica. Para as demais almas é uma obra que vale a pena...

Vera N. Solferini é professora do Departamento de Genética e Evolução do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Fonte.

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NOTA IMPERTINENTE DESTE BLOGGER:

Qual edição do Origem das Espécies a Profa. Vera adota? A 6a. edição? Trabalha com as objeções levantadas por cientistas como St. George Jackson Mivart? Para quem não conhece Mivart, ele foi um protegé de Thomas Huxley (que tinha reservas do poder criativo da seleção natural) que acreditava na ação da seleção natural na evolução, menos na evolução humana. Este cientista foi perseguido depois por Huxley e Joseph Hooker, com o aval de Darwin, e teve sua carreira acadêmica destruída.

A Nomenklatura científica contemporânea não difere em nada do modus operandi de 1871: Darwin locuta, causa finita...