Por Danilo Albergaria
Num artigo publicado em 1983, o biólogo e divulgador da ciência Richard Dawkins cunhou o termo “darwinismo universal” para sugerir que os elementos centrais da teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, poderiam ser aplicados tanto a qualquer outro sistema biológico existente em algum outro canto do universo, quanto às culturas e sociedades humanas. Isso não é exatamente uma novidade. Uma ambição universalista do darwinismo como explicação do que ocorre inclusive nas relações sociais humanas pode ser encontrada no próprio A origem das espécies, de 1859. Nesta obra, que mudou a face da ciência e estabeleceu um paradigma sólido para as vindouras ciências biológicas, o próprio Darwin especula se alguns dos princípios básicos de sua teoria não poderiam servir para explicar até mesmo coisas demasiadamente humanas, como a linguagem e princípios morais. Logo, não é de se espantar que, em resposta à crescente aceitação do darwinismo no final do século XIX, nascentes ciências sociais e humanas como a sociologia e a antropologia tenham, em parte e com muitas reservas, buscado nas ideias de Darwin uma fonte de perguntas, respostas e um modelo científico no qual se basear.
Tome-se o caso da sociologia. Embora sua institucionalização como disciplina acadêmica tenha ocorrido apenas na última década do século XIX, seus desenvolvimentos iniciais são anteriores a 1850. Auguste Comte, cuja obra foi produzida em sua maior parte na primeira metade do XIX, é um dos primeiros pensadores a circunscrever a análise das sociedades humanas como ciência, introduzindo o termo sociologia em 1838. A influente filosofia positivista de Comte lidava com a ideia de evolução social, que preconizava uma escala de desenvolvimento humano cujo ápice era o “estágio positivo”, ou “científico”. Na segunda metade do século XIX, a sociologia abandonou a premissa da evolução social de Comte, mas seguiu a trilha da legitimação pelo viés cientificista, visando diferenciar-se de outros saberes pelo empirismo e o rigor do método científico. Era uma preocupação compreensível: no século em que as ciências se institucionalizaram, em que disciplinas científicas inteiras surgiram e se diferenciaram, e em que a própria profissão de cientista foi claramente definida, a legitimação para um campo relativamente novo como a sociologia deveria vir com a obtenção da chancela de “ciência”. A antropologia, também, não foi exceção, e o mesmo pode ser dito sobre a história, com a pretensão pioneira da escola metódica alemã – encabeçada por Leopold von Ranke – em alcançar um saber histórico objetivo, “científico”.
Essa era uma preocupação fundamental na ciência ocidental quando, em 1859, Darwin e – não esqueçamos – Alfred Russel Wallace elaboraram independentemente uma explicação ao mesmo tempo simples, sofisticada e convincente para o problema da evolução dos seres vivos. A teoria da evolução por meio de seleção natural imediatamente suscitou debates e pouco a pouco ganhou proeminência como um modelo explicativo do mundo natural, incluindo o homem como parte integrante do mesmíssimo processo. Engana-se, no entanto, quem pensa que a sociologia da época absorveu ou dialogou com o darwinismo de maneira aberta. Como afirma Carlos Alberto Dória, sociólogo e pesquisador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), há nesse período uma “auto-ilusão das ciências sociais de poder trabalhar de costas para a realidade orgânica dos seres vivos, inclusive o homem”. Para Dória, “as ciências sociais se constituíram em grande divórcio com o darwinismo. Mesmo Marx e Engels, que estavam atentos ao desenvolvimento das ciências naturais, tiveram dificuldades em lidar com o legado intelectual de Darwin”. No mesmo sentido, André Strauss, pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, da Universidade de São Paulo (USP), argumenta que “ a construção da identidade do chamado 'modelo padrão das ciências sociais' que descarta completamente o papel da biologia na compreensão da mente humana se dá através do discurso em sala de aula no qual os professores usam uma visão estereotipada e debochada do darwinismo para ‘explicar' aos alunos aquilo que eles não devem fazer ou pensar”.
No entanto, se a sociologia, de maneira geral, deu as costas para o darwinismo, uma fração importante do pensamento social do século XIX respondeu a suas influências – muitas vezes, de maneira equivocada. Hoje, as apropriações do darwinismo e do evolucionismo nas análises sociais do século XIX são vistas como tentativas de legitimar, como saber científico, um conjunto de defesas bastante questionáveis de uma ideologia que procurava justificar o sistema capitalista, o modelo liberal e as injustiças sociais. É o caso do pensamento desenvolvido e inspirado por Herbert Spencer, cuja concepção evolucionista das sociedades humanas influenciou uma miríade de estudiosos, de filósofos a economistas. A frase “sobrevivência do mais apto”, por exemplo, que passou ao senso comum como uma noção fundamental do darwinismo, veio não de Darwin, mas de Spencer.
Embora o pensamento social de Spencer seja inspirado mais na teoria evolucionista de Lamarck (para quem a evolução se dá pela transmissão das características adquiridas por uso e desuso – ideia descartada por Darwin), seu conjunto de ideias sobre a sociedade e o de quem lhe deu continuidade ficaram conhecidas como “darwinismo social”. Se os defensores do dito darwinismo social não chegaram a transpor de maneira precisa o modelo darwiniano para a explicação da sociedade, parte de suas noções foi generalizada para o pensamento social. No darwinismo social, a seleção natural darwiniana justificava a seleção social, a “luta pela existência” na natureza passou a justificar a competição desigual no sistema capitalista. O enriquecimento – destino dos “mais aptos” –, a pobreza e a exclusão social seriam resultados de um processo inexorável e benigno: a evolução da sociedade, purgada dos mais fracos, em sua marcha para melhor. Nunca o capitalismo selvagem teve justificativas tão “científicas” quanto com o darwinismo social no fim do século XIX.
Se o pensamento sociológico, à exceção do darwinismo social, se desenvolveu inicialmente apartado do darwinismo, a antropologia lhe foi mais receptiva. Até as primeiras décadas do século XX era muito comum entre os antropólogos a ideia de que as sociedades humanas evoluem em direção a uma complexidade cada vez maior, e os estágios dessa evolução seriam aqueles que os europeus ocidentais experimentaram. Essa concepção não é apenas fruto de apropriação do evolucionismo darwiniano por parte da antropologia. A eurocêntrica hierarquização dos povos, noções como primitivo e evoluído, civilizado e incivilizado: essas marcas da nascente antropologia estão fundamentalmente enraizadas na ideia de progresso cumulativo, linear e irreversível que remonta à filosofia ilustrada do século XVIII, mas que permeia todo o século XIX. Enquanto a imbricação dessa ideia de progresso iluminista com o darwinismo pareceu justificar o eurocentrismo cientificamente, a antropologia deu-lhe uma voz.
A evolução linear eurocêntrica, no entanto, foi sendo aos poucos abandonada, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, dando lugar a abordagens antropológicas que reservavam cada vez menos espaço para hipóteses que vinculassem a cultura ao aspecto biológico, orgânico, dos seres humanos. Somente a partir de 1950 a noção de evolução (dessa vez não eurocêntrica e que não necessariamente levaria as sociedades a percorrerem o mesmo itinerário evolutivo) voltou a ser debatida na antropologia, reacendendo a polêmica. A questão é tão complicada e os embates em torno dela tão ferrenhos que, como afirma o antropólogo e biólogo da USP Walter Neves, no início dos anos 1990 “os departamentos de antropologia da maioria das universidades norte-americanas cindiram”, dando origem a departamentos distintos: a abordagem sociocultural ficou de um lado e a antropologia com base biológica e física, de outro.
As internas críticas à apropriação de conceitos darwinistas pelas ciências sociais e humanas transformaram-se em rejeição ampla e violenta quando a sociobiologia veio à tona, nos anos 1970. O darwinismo de então já não era mais o mesmo. À teoria de Darwin foram incorporados os desenvolvimentos da genética mendeliana (nos anos 1930 e 1940), do que resultou o chamado neodarwinismo. Em 1953, Watson e Crick conceberam a estrutura helicoidal do DNA. Quando a sociobiologia surge, portanto, as ciências biológicas tinham já um paradigma com núcleo darwiniano solidamente estabelecido e coerente, fortalecido com os últimos avanços científicos. Propondo uma nova interpretação das interações sociais animais, estendendo-as ao comportamento social humano, os sociobiólogos estavam colocando em prática a concepção de um darwinismo universal, fonte de explicações também para fenômenos sociais e culturais dos seres humanos. A reação contrária à sociobiologia, e sua explicação de cultura e organização social com base em seleção natural e constituição biológica do ser humano, foi praticamente unânime entre cientistas sociais. Para sociólogos, antropólogos culturalistas e historiadores, a sociobiologia cruzou uma linha clara que separa sociedade e natureza, cultura e biologia. Na sua ânsia em submeter fenômenos culturais e sociais à biologia, a sociobiologia deixou, para a maior parte do meio acadêmico, a impressão de volta ao darwinismo social e à eugenia. Não é surpresa, portanto, que tenha sido defenestrada sem cerimônias das ciências humanas.
Entretanto, o desafio lançado pela sociobiologia – sua intromissão no reino da cultura – mesmo que infrutífero, pode ajudar a levantar questões fundamentais que permearam a difícil relação entre o darwinismo e estudos socioculturais: é realmente necessário haver delimitações claras – barreiras de segurança – entre as ciências humanas e as ciências naturais? Se não, como as ciências humanas podem se beneficiar do estabelecimento de um diálogo com, digamos, a biologia?
Carlos Alberto Dória defende, por exemplo, que o diálogo entre biologia, darwinismo e as ciências sociais “não só é possível como fundamental”, pois “nessa agenda as ciências sociais estão jogando o próprio futuro, e se não conseguirem responder a esses desafios perderão qualquer eficácia explicativa para fenômenos onde a cultura, o conhecimento, precisam ser vistos a partir do seu enraizamento biológico”. Esse tipo de abertura por parte de um cientista social a uma questão tão espinhosa não deixa de ser surpreendente em meio à ainda dominante biofobia das ciências humanas. A mera pergunta “qual é a relação entre biologia e cultura?” ainda é capaz de causar erupções alérgicas nos mais moderados historiadores e antropólogos culturalistas, em parte por causa de uma vaga tendência contemporânea em se descartar a pergunta quando há uma resposta terrível para ela (neste caso, o racismo). Como observa João Azevedo Fernandes, historiador da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), os frequentes descartes de aspectos biológicos para a compreensão de fenômenos socioculturais estão “firmemente ancorados em uma estrita dicotomia mente-corpo que, embora consciente da continuidade evolucionária que liga os homens aos outros animais em seus aspectos físicos, nega por completo essa continuidade quando se trata dos aspectos mentais”.
O historiador Luis Antonio Coelho Ferla, por sua vez, vê a questão por um outro prisma: “o centro de gravidade do desacordo entre as ciências humanas e as biológicas não está numa pretensa imaturidade das ciências humanas”, afirma. Para o professor da Universidade federal de São Paulo (Unifesp), mais decisivas do que isso são “as recorrentes ‘contaminações' das chamadas ciências biológicas por discursos, necessidades e estratégias diretamente políticas e ideológicas”, o que pode ser exemplificado “pelo uso indiscriminado de testes de inteligência e de habilidades cognitivas na seleção de seres humanos, seja para a educação, para o trabalho ou para a imigração”. Como se vê, a questão resvala em discussões políticas, inevitavelmente. Assim, o que torna suspeitas algumas incursões da biologia em questões socioculturais – caso da sociobiologia – não é apenas a inadequação metodológica ou epistemológica mas, também e fundamentalmente, os interesses e discursos políticos que elas podem conter ao mesmo tempo em que os vestem da cabeça aos pés com a roupagem legitimadora do conhecimento científico.
Seja como for, assistimos recentemente ao aparecimento de novas tentativas de estabelecer pontes entre biologia e sociedade, cultura e comportamento humano. A psicologia evolutiva, surgida na década de 1990, empurrou as discussões sobre os aspectos mentais humanos de volta para os problemas da via biológica/darwinista – muito embora essa mesma psicologia possa ser acusada de popularizar um exacerbamento de interpretações biológicas sobre a vida social. No Brasil, instituições como Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz, e grupos em outros centros de pesquisa como a Unicamp e a Universidade Federal de Santa Catarina já começam a se dedicar a analisar com cuidado o relacionamento complicado, as pontes e as incompatibilidades entre biologia, darwinismo e ciências humanas.
Aparentemente, o debate está longe de terminar e o diálogo parece tomar novo fôlego. Quem gosta de ciência, especialmente de sua faceta mais aberta a enfrentar indagações incômodas, agradece.
Leia mais:
Biologia, ciências sociais e teoria dos jogos, de João Azevedo Fernandes.
Darwin's dangerous idea, de Daniel C. Dennett.
Do holocausto nazista à eugenia no século XXI, de Andréa Guerra.
Evolução darwiniana & ciências sociais, de José Eli da Veiga.
Evolução darwiniana e ciências sociais, de Walter Neves.
Generalizing darwinism to social evolution: some early attempts, de Geoffrey Hodgson.
Notas para uma aproximação entre o neodarwinismo e as ciências sociais, de Ricardo Waizbort.
Sob o signo de Darwin? Sobre o mau uso de uma quimera, de André Strauss e Ricardo Waizbort.
Um outro Darwin, de Carlos Alberto Dória.
Fonte.