Naturalistas brasileiros formaram o embrião de uma comunidade científica no século 19

quarta-feira, dezembro 30, 2009

Primeiros passos

Estudo mostra como naturalistas brasileiros formaram o embrião de uma comunidade científica do país no século 19 por meio de pesquisas de campo, viagens de exploração e publicação de artigos em revistas nacionais de literatura.

Por: Sofia Moutinho

Publicado em 28/12/2009 | Atualizado em 28/12/2009


Acampamento da Comissão Científica de Exploração retratado por José Reis de Carvalho, naturalista e pintor oficial da expedição de 1859 (Acervo do Museu Histórico Nacional).

Ainda hoje alguns historiadores da ciência no Brasil relutam em afirmar que já existia uma comunidade científica ativa em território nacional antes da criação das primeiras universidades, na primeira metade do século 20. Apesar de não haver instituições exclusivamente voltadas para a pesquisa, estudos realizados desde a década de 1980 têm refutado essa visão e mostrado que os cientistas brasileiros do século 19 puseram o pé na estrada e produziram bastante.

Esse novo olhar sobre a ciência brasileira naquele período ganhou mais fôlego com um estudo feito pela bióloga Rachel Pinheiro. O trabalho foi realizado durante seu doutorado em Ensino e História de Ciências da Terra pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Pinheiro, que desde o mestrado estuda a produção científica desse período, analisou artigos e correspondências de naturalistas brasileiros da época e concluiu que eles foram os pioneiros na construção de uma comunidade científica no país, além de resgatarem uma produção científica anterior de naturalistas luso-brasileiros que era por vezes renegada por estrangeiros.

Reunidos em instituições como o Museu Nacional (hoje vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro) e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, os naturalistas discutiam suas pesquisas, trabalhavam em laboratório e organizavam viagens para a investigação da natureza brasileira.

Uma expedição pioneira nesse sentido foi promovida pela Comissão Científica de Exploração, criada em 1856. Formada por naturalistas brasileiros de áreas como zoologia, botânica e geologia, a comissão partiu para o Ceará em 1859, em busca de riquezas naturais a serem catalogadas e estudadas.

“A Comissão Científica de Exploração foi a primeira iniciativa para a formação de uma comunidade científica brasileira sólida”, diz Pinheiro. A pesquisadora explica que a expedição teria sido criada em resposta a uma carência de trabalhos científicos nacionais sobre o Brasil. “Os cientistas brasileiros estavam irritados pela supervalorização do que os estrangeiros escreviam sobre as riquezas de um país que não era deles.”

Segundo Pinheiro, a expedição não ficava atrás das realizadas por estrangeiros. Dirigida pelo naturalista Francisco Freire Allemão (1797-1874) – que era médico e professor particular das filhas do imperador –, a comissão contou com os melhores naturalistas brasileiros, como Guilherme de Capanema (1824-1908) e Manoel Ferreira Lagos (1816-1871). O escritor Gonçalves Dias (1823-1864), mais conhecido pelo poema Canção do exílio e outras obras literárias do que por sua atuação como naturalista, também participou – foi ele o encarregado da compra de livros e instrumentos na Europa para aparelhar a expedição.

Outra ciência

A ciência daquele período difere muito da praticada atualmente. Os naturalistas possuíam uma formação polivalente e pertenciam ao setor da elite ligado ao governo. Muitos exerciam cargos públicos e eram empregados do Museu Nacional. Praticamente não existia ciência que não fosse financiada pelo governo imperial, embora a formação dos cientistas se desse na Europa.

“Era comum que um naturalista atuasse em mais de uma área, como por exemplo, zoologia e botânica ou geologia”, explica Pinheiro. “Além disso, eram desenhistas, escritores e até mesmo poetas”.


Vista da cidade cearense de Icó, onde a Comissão Científica de Exploração montou acampamento por 40 dias, pintada por José Reis de Carvalho (Acervo do Museu Histórico Nacional).

Contrariando as expectativas de encontrar no Ceará ouro e diamantes, a comissão retornou ao Rio de Janeiro trazendo mais de 15 mil amostras botânicas, além de animais empalhados. Quase nada chegou de minerais, pois o navio que os transportava naufragou. O material coletado foi enviado para o Museu Nacional, onde ainda está abrigado.

Outra contribuição da comissão foi a descoberta de ferro e salitre que serviram para a produção de pólvora. Esse achado foi decisivo na época, pois o Brasil vivia um desconforto político com Paraguai que, anos mais tarde, acabaria culminando no maior conflito armado já ocorrido na América do Sul.

Divulgação científica brasileira

A pesquisa de Pinheiro trouxe novidades sobre a rotina dos cientistas brasileiros do século 19. Ao contrário do que pensava a historiografia tradicional, seu estudo mostra que eles não só possuíam produção escrita, como também mantinham um forte intercâmbio científico com naturalistas da Europa. “Freire Allemão, por exemplo, tinha muitos trabalhos publicados em latim na Europa e recebia trabalhos para publicar no Brasil”, conta Pinheiro.

Como não existiam revistas especializadas em ciência no país, a produção dos naturalistas era publicada em veículos de literatura e variedades, como a Revista Brazileira e a Guanabara. Segundo Rachel, as tentativas de criação de revistas de ciência fracassavam por falta de assinantes e dinheiro. Mas os naturalistas não desistiam e publicavam nas revistas comuns seus artigos e trabalhos que eram traduzidos e enviados para os cientistas da Europa.

Nessa época, ainda não havia uma preocupação em divulgar as ciências naturais entre o público leigo e mesmo o que saía nessas revistas era escrito em linguagem técnica para os cientistas. A produção dos naturalistas era dirigida para os especialistas estrangeiros. “Não havia reconhecimento do trabalho científico na sociedade brasileira, apenas entre um setor da elite muito restrito. Por isso os trabalhos científicos eram produzidos para os estrangeiros.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-Line