JC e-mail 3919, de 29 de Dezembro de 2009.
19. A elusiva matéria escura, artigo de Marcelo Gleiser
"Em ciência, só sabemos o que podemos medir"
Marcelo Gleiser é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA). Artigo publicado na "Folha de SP":
Na semana retrasada, cientistas do experimento CDMS, localizado numa mina abandonada no estado de Minnesota, nos EUA, divulgaram os esperados resultados de um experimento que realizam. Seu objetivo é capturar exemplares da elusiva matéria escura, que, estima-se, compõe aproximadamente 84% da matéria cósmica. Apesar de a sua existência ter sido conjeturada no início da década de 1930, nenhuma detecção foi realizada até agora.
A dificuldade é que esse tipo de matéria não tem nada a ver com a matéria comum, da qual somos feitos nós e tudo aquilo que vemos à nossa volta e nos céus. Como sabemos, a matéria normal é feita de átomos, e estes, de elétrons, prótons e nêutrons. Essas três partículas interagem entre si de modos diversos, devido à ação de quatro forças fundamentais: a gravidade, o eletromagnetismo e as forças nucleares forte e fraca, que só se manifestam a distâncias nucleares. "Detectar" uma partícula significa medir o seu efeito em outras, o que ocorre através de uma ou mais dessas quatro forças. Em geral, uma detecção envolve uma colisão entre duas ou mais partículas.
Essa colisão transfere energia e momento de uma partícula à outra, e essa transferência pode ser medida. Nas colisões normais, partículas são atraídas ou repelidas por uma ou mais das forças, especialmente a eletricidade e as forças nucleares forte e fraca. O desafio com a detecção de partículas de matéria escura é que sentimos sua presença apenas através da sua massa.
E os efeitos da gravidade são extremamente pequenos em escalas atômicas. Sabemos que a matéria escura existe devido ao seu efeito gravitacional sobre a matéria comum: vemos objetos luminosos se comportarem como se estivessem respondendo à atração gravitacional de coisas invisíveis. Por exemplo, galáxias giram mais rapidamente do que deveriam se toda a sua massa fosse apenas aquela feita de átomos. Elas são envoltas numa espécie de véu de matéria escura que modifica a sua rotação.
É esse véu que nos fornece as partículas de matéria escura que podem ser detectadas na Terra. À medida que viajamos pelo espaço, atravessamos o véu de matéria escura. Em geral, suas partículas passam direto pela Terra, como se fossem fantasmas. Muito raramente, uma delas pode se chocar com a matéria comum e transferir a sua energia e o seu momento.
O laboratório no fundo da mina em Minnesota contém detectores resfriados a baixíssimas temperaturas para eliminar todo o tipo de vibração. Estar nas entranhas da Terra ajuda a filtrar outras partículas indesejadas que também interagem fracamente com a matéria. O desafio é que, mesmo assim, as colisões com as hipotéticas partículas são muito raras, apenas algumas por ano. E elas devem ser diferenciadas de colisões com nêutrons.
Apesar da enorme expectativa, a declaração dos cientistas do CDMS foi muito cautelosa; apenas dois sinais suspeitos, que poderiam ser matéria escura, mas que têm também uma probabilidade razoável de ser apenas dois nêutrons comuns.
Devo congratular os cientistas por terem resistido à tentação demasiado humana de inflar seus resultados. Quando se dedica anos de uma carreira a um experimento, é muito difícil não se deixar levar pela empolgação e pela pressão de mostrar resultados revolucionários. A detecção é inconclusiva, sendo útil para limitar as massas e as interações das partículas candidatas. Mas a busca continua, os detectores estão sendo refinados e, no ano que vem terão maior precisão. Talvez a próxima declaração do grupo seja mais positiva. Em ciência só sabemos o que podemos medir.
(Folha de SP, 27/12)
+++++
NOTA IMPERTINENTE DESTE BLOGGER:
Gleiser sabe que há muitas coisas em ciência que não podem ser medidas, mas fazem parte do corpus teórico aceito pela comunidade científica. Inclusive muita coisa na Física. Por exemplo: teoria das cordas, multiversos e muita metafísica que a coluna de Gleiser na Folha de São Paulo brinda seus leitores...
Ah, ia me esquecendo: a hipótese da ancestralidade comum, a Árvore da Vida (medidas as mais conflitantes) y otras cositas mais em biologia evolutiva que não podemos medir, mas é aceito como fato, Fato, FATO científico...
Pelo rigor epistêmico de Gleiser, nem na Física nós podemos saber...