Roberta Jansen, "O Globo", beija-pé de Darwin

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

JC e-mail 3698, de 09 de Fevereiro de 2009

15. O abolicionista Darwin

A noção de igualdade estaria por trás da Teoria da Evolução, sustenta novo livro

Roberta Jansen escreve para “O Globo”:

O ponto de partida de Charles Darwin para a Teoria da Evolução — que alteraria para sempre a História ao separar a ciência da religião — seria a sua arraigada crença abolicionista de que todos os seres humanos compartilham a mesma linhagem sanguínea em razão de sua ancestralidade comum.

A ideia de que a postura antiescravagista do cientista estaria na origem da revolucionária teoria é defendida no livro “Darwin’s sacred cause” (ainda sem edição em português), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos por dois grandes especialistas e biógrafos de Darwin, Adrian Desmond e James Moore, por ocasião das comemorações dos 200 anos de seu nascimento, no próximo dia 12.

A despeito das errôneas e muitas vezes preconceituosas interpretações criadas pelo chamado darwinismo social (a noção de que a sociedade progride pela sobrevivência do mais forte), Charles Darwin estava longe de ser um racista.

Muito pelo contrário, em vários trechos de seus escritos, muitos deles em sua passagem pelo Brasil, ele condena com veemência a escravidão e fala abertamente sobre a igualdade dos homens. A famosa viagem do Beagle, sustentam os autores, além de fornecer ao cientista uma coleção preciosa de animais extintos e vivos, deu a ele a oportunidade única de ver a escravidão in loco.

A partir dessas observações, os autores invertem a noção tradicionalmente aceita de que Darwin seguiu a trilha da pesquisa empírica até alcançar a sua fundamental teoria — segundo a qual o homem é ligado aos outros animais e descende de um ancestral comum ao dos macacos e que as espécies evoluem a partir de mutações aleatórias e da seleção natural dos mais bem adaptados.

“O ponto de partida de Darwin foi a sua crença abolicionista no parentesco sanguíneo, numa descendência comum” a todos os seres humanos, sustentam os autores.

Ainda que as crenças abolicionistas de Darwin não tenham sido necessariamente o ponto de partida da Teoria da Evolução e de sua principal obra, “A origem das espécies”, especialistas concordam que a sua ideologia liberal permitiu que ele deixasse de lado arraigados preceitos raciais e religiosos para chegar às importantes conclusões a que chegou.

— Sem dúvida ele era um abolicionista arraigado, ele era um inglês do século XIX, escravidão para ele era uma coisa inconcebível. Ele ficou realmente horrorizado no Brasil — afirma Maria Isabel Landim, do Museu de Zoologia da USP, organizadora, ao lado de Cristiano Rangel Moreira, do livro “Charles Darwin —Em um futuro não tão distante” (Instituto Sangari), uma coletânea de artigos sobre o cientista a ser lançado esta semana. — Esse arcabouço liberal permitiu que ele rompesse barreiras ideológicas.

Há raízes familiares para isso. Os dois avós de Darwin, o poeta Erasmus Darwin e o ceramista Josiah Wedgwood participaram ativamente da luta pela abolição da escravidão e do tráfico negreiro. Um camafeu cunhado por Wedgwood mostra um negro acorrentado e ajoelhado sobre a inscrição: “Eu não sou um homem e um irmão?” Mais evolucionista impossível.

— Darwin vivia num meio intelectual, cercado de livres pensadores, entre os quais essas idéias mais humanistas circulavam com facilidade — aponta Ricardo Campos da Paz, professor de evolução da Universidade Federal do Estado do Rio (Unirio), que, no próximo dia 12 dará palestra na Uerj sobre “O homem Charles Darwin”.

— Então acho que havia muitas idéias na cabeça dele, que o direcionaram nesse sentido. Essas idéias humanistas o afastaram do pensamento religioso, por exemplo. Tudo isso permitiu que ele tivesse uma cabeça aberta o suficiente para pensar na teoria.

A crítica à escravidão e, especificamente à elite escravocrata brasileira, é bem forte em seu diário de viagem do Beagle.

— O abolicionismo é um traço forte nele, mesmo antes de qualquer idéia relacionada à seleção natural — aponta o economista Sérgio Besserman, um estudioso de Darwin, que assina um dos artigos do livro “Em um futuro não tão distante”.

— Há trechos fortíssimos do diário, em que ele fala mal da elite escravocrata brasileira e elogia os negros, dizendo que, possivelmente chegarão um dia ao poder, como Obama hoje — diz Besserman.

A crítica à escravidão reaparece, já com forte embasamento científico, na “Origem do homem”, quando — antecipando-se muito às atuais teorias comprovadas pelo estudo do DNA —, Darwin assegura que as diferenças externas entre as raças são muito pouco significativas e sem muita importância ou teriam desaparecido pela seleção natural.
(O Globo, 9/2)