JC e-mail 3698, de 09 de Fevereiro de 2009
14. Lições de um observador
Bisneto de Charles Darwin diz que biólogos modernos publicam dados sem saber o que eles são e que paciência na análise era principal virtude científica do pai da teoria evolutiva
Charles Darwin (1809-1882) não sabia o que era DNA, não rastreava animais usando GPS e não levou câmera fotográfica digital em sua viagem, mas sua maneira de trabalhar ainda tem muito a ensinar aos biólogos. Essa é a opinião de alguém que -seja por cultura ou por genética- herdou um pouco do talento do grande naturalista.
Para Richard Darwin Keynes, 89, bisneto do criador da teoria da evolução, as notas que o cientista tomou durante a viagem do HMS Beagle, de 1831 a 1835, são exemplo de como pensar sobre informação nova quando ainda não se sabe que rumo de raciocínio tomar. As vésperas da comemoração do bicentenário de Darwin (12 de fevereiro), ele faz questão de lembrar seu bisavô não apenas pelo conhecimento que deixou construído, mas pelo modo com que o construiu.
Keynes, que também é cientista, já trabalhou no Brasil e tem importantes estudos sobre a fisiologia dos peixes elétricos. Leia abaixo entrevista que o biólogo herdeiro de Darwin concedeu a Folha por telefone, de sua casa em Londres:
- Hoje a biologia sofre um certo revisionismo por conta da epigenética -estudo de como organismos podem herdar características sem usar o DNA. O sr. acha que isso ainda pode estar alinhado com o que Darwin pensava, já que ele não conhecia mesmo o DNA?
Bom, é difícil avaliar isso, e o problema é que Darwin nunca conheceu mesmo os mecanismos pelos quais as coisas são herdadas. E nunca avançou muito nisso. Foi só o enorme aumento do volume de pesquisas em todo o mundo sobre os mecanismos de hereditariedade que tornou a determinação da estrutura do DNA possível, também com ajuda das descobertas de [Gregor] Mendel. Mas Darwin nunca soube sobre Mendel. Mendel veio a Inglaterra na época, mas não conversou com Darwin.
- Apesar de ‘A Origem das Espécies‘ ter recebido esse nome, alguns biólogos apontam que o livro não chega a explicar a especiacao. Sua grande contribuição teria sido o conceito de seleção natural. O sr. acredita que ha base hoje para explicar o que afinal leva uma espécie a se dividir em duas?
Bom, Darwin sabia disso, e isso não significa que ele estivesse errado. Neste caso, também, ele apenas não conhecia os mecanismos. Não é só o DNA que ele desconhecia, há muito mais coisas sobre como as coisas acontecem que ele não sabia. Um pesquisador chamado [Peter] Grant, que trabalha há muito tempo nas Galápagos com os tentilhões, estudou o mecanismo de especiação nos pássaros lá durante vinte e poucos anos. Analisou seus bicos, que sabemos que são importantes para o tipo de alimentação deles e sobre a maneira como evoluíram. Esse processo depende de mudanças nos arredores. Mudanças nas coisas com que eles se alimentavam, além de outras coisas. E isso tudo foi estudado por Darwin apropriadamente, mas só agora foi aprofundado por Grant e sua esposa [Rosemary], professores na Universidade de Princeton.
- Alguns biólogos hoje estão questionando a utilidade da cladística tradicional -a subdivisão de grupos de seres que evoluem se ramificando, representada por gráficos em forma de árvore. Dizem que isso não reflete a complexidade que envolve a separação entre duas espécies, porque não é possível determinar um ponto exato de separação. O sr. acha que ainda há espaço para os desenhos de árvores de espécies como Darwin fez?
Não sei muitos detalhes sobre isso. Acredito que seja verdade, mas as mudanças ocorrem espaços de milhões de anos, e muitos organismos não podem mais ser estudados hoje. Nessa escala de tempo, essa forma de representação [a cladística] faz sentido.
- Muitos professores de biologia costumam contar a história sobre como Darwin estava observando os tentilhões em Galápagos e de repente teve seu momento de eureca, concebendo a teoria da evolução. Hoje sabemos que na verdade ele levou muitos anos. É possível reconstruir sua linha de raciocínio?
É verdade. A coisa não ocorreu daquela forma súbita. Não sei se eu conseguiria dizer algo breve sobre isso que acrescente algo. Eu me lembro de uma pequena anotação que ele deixou sobre um pequeno inseto que ele descobriu no estreito de Magalhães, na costa da Argentina. Ele ficou muito entusiasmado quando descobriu esse animal. Foi a primeira vez que ele viu, nesses animais muito primitivos, como eles se comunicam com seus similares e como conseguem agir de maneira correta. Isso é um passo muito importante para entender especiação e evolução. Em 1934, ele notou nessa espécie alguns chifres, bonitos, que ela usava para capturar comida. E ele ficou muito entusiasmado quando escreveu sobre o animal e sublinhou tudo. Mas depois ele não discutiu mais isso, e nunca mais fez referências a esse animal específico. Esse espécime existe no Museu de Zoologia em Cambridge. Ele ficou mais entusiasmado com isso do que com qualquer outro animal que ele vira e descrevera em suas notas. E isso foi antes de ele ter a ideia da evolução. É curioso que ele não o tenha mencionado depois, mas na época da descoberta ele realçou quão importante isso era. Isso é absolutamente importante para entender a evolução, e ele pensou nisso antes da evolução.
- A coisa mais impressionante sobre Darwin talvez seja ver hoje quão bom observador ele era. Hoje, que os biólogos usam câmeras e ferramentas modernas, o sr. acha que o modo com que ele trabalhava ainda pode ter algo a ensinar?
Sim, certamente. Eu gastei um longo tempo, há muitos anos, estudando e transcrevendo todas as notas que ele tomou a bordo do Beagle. Publiquei tudo num grande volume. Quem as lê, percebe o modo com que o cérebro dele funcionava. O modo com que sua cabeça pensava sobre como o animal se locomove e coisas assim. Isso é muito importante. E é importante ver que ele foi uma das primeiras pessoas a estudar comportamento animal de modo apropriado. Ele foi uma das primeiras pessoas a estudar ecologia -a relação dos animais com seu ambiente. O livro sobre essas notas está publicado. E não é muito caro.
- O sr. disse à Folha cinco anos atrás que estava preparando uma nova edição do ‘Origem das Espécies‘. Ela será publicada agora?
Não exatamente. Escrevi a introdução de uma edição da Folio Society, que não a vende de maneira convencional. Produzimos uma das melhores edições ilustradas que existem, acho. Infelizmente não se pode comprá-la sem ser membro da Folio Society.
- A família Darwin está planejando algo especial neste ano, além de integrar as comemorações acadêmicas oficiais?
Sim. Há várias coisas acontecendo. Daqui uma semana estou indo para a Down House, em Kent, que é a casa onde Darwin viveu por muitos anos. Está sendo restaurada agora, e estão tentando deixar seu interior da maneira como era quando ele morou lá. Recuperaram vários objetos de Darwin. Há até livros para crianças que eram da filha de Darwin. São exemplares que minha mãe recebeu de uma senhora chamada Henrietta Litchfield, que cuidava dela. E a Down House está sendo reaberta agora. Não é muito longe de Londres, e eles conseguiram reunir mesmo diversas coisas originais de Darwin, como móveis etc.
- A tradição científica continua seguindo em sua família? O sr. já havia me falado sobre a possibilidade de um de seus netos seguir carreira em biologia.
Ainda não tenho nenhum neto que tenha completado o doutorado. Um deles está neste momento visitando Ilha de Páscoa e Galápagos, mas não sei... É possível que ainda haja novos biólogos na família Darwin. Meu avô, que era um dos filhos dele, se tornou matemático. Um de meus primos era fisiologista -eu sou fisiologista também- e temos vários cientistas conhecidos na família. Mas é um pouco difícil você trabalhar com evolução quando se é descendente de alguém como Darwin.
- Hoje há um grupo de cientistas religiosos não fundamentalistas que tenta conciliar a crença religiosa com a crença na evolução, mas sem adotar o criacionismo. Isso é o que Darwin tentou fazer?
Bom, ele não tinha essa crença, essa cristandade. E isso era difícil para ele porque sua esposa certamente tinha essa crença. E essa é uma das razões pelas quais ele talvez tenha demorado tanto a publicar o ‘Origem das Espécies‘. Mas ainda é uma questão: saber por que ele esperou tanto para publicar após ter tido suas ideias. Isso é muito diferente do que ocorre hoje em dia. As pessoas têm publicado suas coisas rápido demais, até mesmo antes de conseguirem alinhar suas ideias. Darwin era o inverso disso. Eu acho que a razão pela qual ele demorou tanto é que ele queria mesmo organizar melhor as informações que ele mesmo havia coletado sobre as vidas dos animais.
- Todos conhecem hoje o legado de conhecimento que Darwin produziu. O que ele deixou de mais importante em relação a seu método? Sua técnica de observação ainda é útil para biólogos de hoje?
Acho que sim. É claro que ele não tinha as ferramentas modernas de hoje, mas se você lê suas notas, pode ver que todo o tempo ele estava trabalhando com o objetivo simples de entender como o animais vivem. Acontece que ele não estava trabalhando no aspecto mendeliano, porque não conhecia isso. Mas uma das coisas mais impressionantes sobre Darwin é ver o quanto ele descobriu de coisas corretas sobre hereditariedade sem conhecer Mendel. Mendel veio até aqui, mas não chegou a conversar com Darwin. E Darwin não poderia tê-lo encontrado depois. Após a viagem do Beagle, Darwin nunca viajou para outros países, só para alguns lugares dentro da Inglaterra. Hoje nós sabemos sobre os mecanismos de hereditariedade de todas as características dos animais, mas nós não sabemos como se pensava sobre isso no passado, porque para isso seria preciso voltar no tempo, milhões de anos, para descobrir como tudo aconteceu.
(Folha de SP, 8/2)