+Marcello Geiger
As facções da ciência e as religiões
Forçar a rigidez teórica é condenar a ciência a viver em profunda ignorância epistêmica
Como escrevi em colunas recentes, neste ano celebramos dois grandes aniversários. O primeiro, a louvaminhice, o beija-mão e beija-pé do bicentenário do nascimento de Charles Darwin e o sesquicentenário da publicação do "A Origem das Espécies" (não foi assim tão revolucionário na sua época como alardeado falsamente pelos colunistas e jornalistas científicos que não conhecem História da Ciência [“The Non-Darwinian Revolution – Reinterpreting a Historical Myth”, Peter J. Bowler, John Hopkins University Press, 1988). O segundo aniversário de livro, este sim revolucionário, os quatrocentos anos da publicação do livro "Astronomia Nova", em que Johannes Kepler mostrou que a órbita de Marte é elíptica, inferindo que todas as outras seriam também.
No mesmo ano, 1609, Galileu Galilei apontou o seu telescópio para os céus mudando a astronomia para sempre. E não foi só por causa disso, mas por inveja dos seus pares, foi entregue ardilosamente de mão beijada pela Nomenklatura científica do seu tempo para que a Igreja Católica, detentora do poder temporal da época realizasse o trabalho sujo — “A solução final” dos dissidentes da ortodoxia paradigmática. Persiste no século 21 sem a ajuda da religião teísta, mas com ajuda da religião ateísta.
Em ambos os casos, as descobertas científicas criaram sérios atritos não só com as autoridades religiosas, mas com a Nomenklatura científica que é antropofágica e destruidora de carreiras acadêmicas. Atritos que, infelizmente, sobrevivem de alguma forma até hoje, não só principalmente com as religiões monoteístas que dominam o mundo ocidental e o Oriente Médio: judaísmo, cristianismo e islamismo, mas com a Nomenklatura científica mesmerizada pelo naturalismo filosófico. O momento é oportuno para iniciarmos uma reavaliação das suas causas e apontar, talvez, resoluções. A verdade não está com a religião e nem com a ciência. A verdade está na verdade.
Simplificando, o problema maior não começa no embate entre a ciência e a religião. Começa no embate entre as religiões e nas muitas facções científicas. Existe uma polarização cada vez maior já dentro das religiões entre correntes mais ortodoxas e aquelas mais liberais, polarização esta cada vez maior também dentro das facções científicas. As diferenças são enormes tanto nas religiões como na ciência. Por exemplo, no caso do judaísmo, podemos hoje encontrar rabinas liderando congregações, algo que enfureceria ao meu avô e a seus amigos. Na ciência existem correntes que privilegiam mais as evidências e outras que privilegiam a teoria em detrimento das evidências contrárias. Ciências exatas e ciências humanas. Tem até ciência sem sujeito de pesquisa: a exobiologia.
Nos EUA, algumas correntes protestantes, como os episcopélicos [SIC ULTRA PLUS: episcopais], têm pastores e bispos abertamente homossexuais. Nessas correntes mais liberais dentre as religiões se vê também uma relação completamente diferente com a ciência. Não só nos EUA, mas também no Brasil, como há cientistas abertamente homossexuais diretores de departamentos de universidades públicas e privadas. A preferência e prática sexuais desses cientistas não depõem contra sua preferência e prática de ciência normal. O que depõe são alguns casos de “favores sexuais” solicitados para que o(a) aluno(a) avance na graduação, pós-graduação, y otras cositas mais. Nós sabemos do que estamos falando...
Há colunistas científicos que enxergam nesta liberalidade sexual das religiões uma coisa boa. “Em vez do radicalismo imposto por uma interpretação liberal [SIC: não seria literal?] da Bíblia, as correntes mais liberais tendem a ver o texto bíblico de forma simbólica, como uma representação metafórica de acontecimentos e fatos passados com o intuito — dentre outros — de fornecer uma orientação moral para a população. E ficam de comentar a questão da necessidade de um código moral de origem religiosa para outro dia, demonstrando profunda ignorância de que este assunto não é científico.
Que existem pastores e rabinos afirmando ser absurdo insistir que a Terra tenha menos de 10 mil anos ou que Adão e Eva surgiram da terra, não se discute. O que se discute, e aqui cabe a pergunta marota deste advogado do Diabo: e o resto do texto sagrado das concepções religiosas, também é absurdo? Como fazer essa distinção hermenêutica? Através do Urim e Tumim, de runas, búzios, tarô, uni, duni, tê? Vale tudo? O que é mito? O que é verdade? O que é a realidade? O que é ciência? Conheço mais de 15 definições...
Realmente, para um número cada vez maior de congregações, é fútil fechar os olhos para os avanços da ciência, mas muito mais fútil para elas é fechar os olhos para as insuficiências teóricas fundamentais de determinadas teorias científicas da origem e evolução da vida em um contexto de justificação teórica. Elas rendem sua capacidade de pensar, seus cérebros, no altar da uniformidade do discurso epistemológico em detrimentos das evidências.
Para eles, não basta somente a preservação dos valores religiosos, da coesão de suas congregações depende de uma modernização de suas posições de modo que possam refletir o mundo em que vivemos hoje e não aquele em que pessoas viviam há dois mil anos. Muito mais importante para eles é mostrar que a Nomenklatura científica se recusa modernizar suas posições de modo a refletir o mundo das evidências que encontramos no século 21 e não aquele em que os cientistas viviam no século 19.
O mundo mudou, a sociedade mudou, a ciência também precisa e deve mudar. Do jeito que está não é ciência, é naturalismo filosófico. É ideologia.
Insistir na rigidez da ortodoxia é condenar a ciência a viver em profunda ignorância epistêmica, numa realidade incompatível com as evidências encontradas na natureza. Se o pastor ou rabino ortodoxo tem câncer e recebe terapia de radiação, ele deve saber que é essa mesma radiação que permite a datação de fósseis com centenas de milhões de anos. É hipocrisia aceitar a cura da radiação nuclear e ainda assim negar os seus outros usos. Por outro lado, muito mais hipocrisia está do lado do cientista, que descobriu a terapia de radiação posteriormente, mas lançou primeiro duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, e diz, simploriamente, que este foi um uso indevido da ciência, e tentam assim eximir-se da culpa de genocídio. Genocidas!!!
Indiscutível — fechar os olhos para os avanços da ciência é escolher um retorno ao obscurantismo medieval, quando homens viviam suas vidas assombrados por espíritos e demônios, subjugados pelo medo a aceitar a proteção de Deus. Um colunista científico foi mais longe e pregou com ardor evangélico: “A escolha por uma devoção religiosa — se é essa a sua escolha — não deveria ser produto do medo.”
Deveria ser produto do quê? Nosso colunista científico não explica. Dos milhões de anos de evolução? Nas populações humanas existiria alguma vantagem devido a pressão seletiva de uma “crença” no Invisível/Inexistente? Se foi pressão seletiva que favoreceu a espécie humana sobreviver e evoluir, o que vemos hoje é a “solução final”, o extermínio dessas populações evolutivas infligidas por outro grupo cultural mais poderoso: os “Homo sapiens sapiens dawkinsiensis” que afirmam ser Deus uma ilusão. Todos nos seus guetos e catacumbas sabáticos ou dominicais. Alijados da construção da realidade cultural. “Darwin über alles!!!” "Darwin locuta, causa finita!!!"
Na catedral de São Paulo em Melbourne, Austrália, aconteceu um simpósio sobre Darwin. Nos EUA, cerca de 800 pastores e rabinos se reuniram para discutir modos de reconciliação entre ciência e religião. Parece que finalmente um novo diálogo está começando. Já era tempo. Mas dois grupos ficaram de fora dessas discussões: os crentes de concepções religiosas conservadoras e os cientistas mesmerizados pelo naturalismo filosófico como se fosse a própria ciência. Sem essas espécies, não ocorre o diálogo.
Caveat (cuidado) Nomenklatura científica, em ciência o que vale são as evidências, que se danem as teorias. Tentar cooptar os fiéis de concepções religiosas para discursos que a ciência não diz (quem diz são os cientistas influenciados por sua Weltanschauung) não é hipocrisia, é desonestidade acadêmica e descompasso com a verdade científica, pois a ciência nada diz sobre Deus.
MARCELLO GEIGER é professor de metafísica quântica no Darwinmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro “A Desarmonia da Ciência”.
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Baseado em +Marcelo Gleiser
A ciência e as religiões [Via Jornal da Ciência em 25/02/2009]
Forçar a rigidez é condenar a congregação a viver no passado.
Como escrevi em posts recentes, neste ano celebramos dois grandes aniversários. O primeiro, o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e o sesquicentenário da publicação de seu revolucionário "A Origem das Espécies". O segundo, os quatrocentos anos da publicação do livro "Astronomia Nova", em que Johannes Kepler mostrou que a órbita de Marte é elíptica, inferindo que todas as outras seriam também.
No mesmo ano, 1609, Galileu Galilei apontou o seu telescópio para os céus mudando a astronomia para sempre.
Em ambos os casos, as descobertas científicas criaram sérios atritos com as autoridades religiosas. Atritos que, infelizmente, sobrevivem de alguma forma até hoje, principalmente com as religiões monoteístas que dominam o mundo ocidental e o Oriente Médio: judaísmo, cristianismo e islamismo. O momento é oportuno para iniciarmos uma reavaliação das suas causas e apontar, talvez, resoluções.
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