JC e-mail 3702, de 13 de Fevereiro de 2009.
24. Leitor comenta artigo “O gigante Lamarck”, de Marcelo Leite
“Bem mais justo seria passarmos a chamar "Lamarckismo-Darwinismo" à grande teoria da evolução, delineada por Lamarck e completada e aperfeiçoada por Darwin.”
Leia a mensagem de Raul A. Félix de Sousa, autor do livro "Ecopoese: a criação da ecosfera" (2006). E-mail: raulfelix@terra.com:
“É mais do que apropriado o paralelo feito por Marcelo Leite (JC Edição 3698, 9/2/2009) entre a injustiça histórica que transformou Salieri num vilão invejoso e Lamarck num tolo equivocado.
Salieri, excelente compositor e mestre de seu ofício, embora talvez não genial como Mozart, mas querido e respeitado por seus inúmeros discípulos, entre os quais figuram nada menos que Schubert, Lizst e Beethoven, passou à história das intrigas como tendo tramado a morte de Mozart. Nada mais injusto. Todos os registros contemporâneos dão testemunho de um colega leal, que inclusive lutou para que as óperas e missas de Mozart fossem executadas, tendo mesmo dirigido pessoalmente algumas delas.
No caso de Lamarck, porém, a injustiça vai muito além do que é normalmente reivindicado pelos cientistas que investigam a possibilidade da chamada "herança dos caracteres adquiridos" ou "lei do uso e desuso", por ele sugerida como mecanismo para justificar a especiação e a adaptação das espécies ao meio-ambiente.
Em primeiro lugar, foi Lamarck quem definiu e batizou um campo específico e determinado das ciências naturais, a biologia. Não bastando isto, posicionou a evolução no centro de suas atenções. Logo ele, conhecedor enciclopédico e organizador de inúmeros ramos da botânica e da zoologia, rompeu com a tradição taxonômica dos que até então se dedicavam ao estudo da vida, e deu a este domínio das ciências um fio condutor, tornando acessória a função de colecionar e inventariar espécies.
Não para aí a dimensão do legado de Lamarck. Até ele, as espécies eram consideradas imutáveis, e os fósseis, produto de dilúvios ou cataclismas [sic]. Foi Lamarck quem estabeleceu, com todas as letras, que as espécies procedem de ancestrais comuns, e que as analogias que se observam entre os seres vivos se devem a um parentesco genético. O fato de que não tenha podido explicar adequadamente a forma como se deram estas transformações não deveria em nada diminuir os méritos de suas descobertas.
O próprio Darwin nunca deixou de reconhecer o valor de Lamarck. [Nota do blogger: Darwin sempre desdenhou de Lamarck, apesar de usar as idéias daquele para corroborar as suas. Vide a 6ª. edição do Origem das Espécies] Nem sequer foi Darwin quem derrubou a idéia da herança dos caracteres adquiridos. Ciente de que a seleção natural tinha como pré-requisito a existência de variabilidade nas populações, e ainda ignorando os estudos de Mendel que demonstraram que esta não se perde ao longo das gerações como então se supunha, Darwin jamais se pronunciou contra o "uso e desuso" como uma das possíveis causas de mutação.
Na realidade, a herança dos caracteres adquiridos não era sequer uma proposição original de Lamarck, e sim uma crença popular, e sua refutação não foi obra Darwin, mas do pensamento neodarwinista, já informado pela genética mendeliana, no século XX. [Nota do blogger: Na 6ª. edição do Origem das Espécies, Darwin se mostra mais lamarckista do que Lamarck]
Ironicamente, a reavaliação desta forma de aumento da variabilidade, agora inadequadamente denominada "neolamarckismo", se confirmada como um princípio geral acessório dos processos evolutivos dará mais uma vez razão a Darwin.
Bem mais justo seria passarmos a chamar "Lamarckismo-Darwinismo" à grande teoria da evolução, delineada por Lamarck e completada e aperfeiçoada por Darwin. [Nota do blogger: Ué, e Alfred Russel Wallace, o ‘co-descobridor’ do princípio da seleção natural fica de fora? Já pensou que nome pomposo: “Lamarckismo-Wallaceismo-Darwinismo”. Uma trindade naturalista [eu não pude resistir, e os de subjetividade religiosa cristã que me perdoem].
Portanto, ao rendermos as justas [sic] homenagens a Charles Darwin, cabe-nos reverenciar [sic] também a memória deste gigante sobre cujos ombros o grande sábio se ergueu: Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck.”
NOTA DESTE BLOGGER:
O melhor livro em português sobre Lamarck é “A teoria da progressão dos animais, de Lamarck”, de Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, Rio de Janeiro, Booklink, São Paulo, Fapesp, GHTC, Unicamp, 2007.
Contrariando a tese acima de que Darwin ‘aperfeiçoou’ e ‘completou’ a teoria da evolução delineada por Lamarck, o livro “Lamarck’s signature: how retrogenes are changing Darwin’s natural selection paradigm”, de Edward J. Steele,Robyn A. Lindley e Robert V. Blanden, Série Frontiers of Science, editado por Paul Davies, Basic Books .