Em “1984”, Goldstein é uma criação do Partido, um inimigo comum que serve para canalizar a insatisfação.
Começou tudo de novo nesta semana de louvaminhice a Darwin. A Nomenklatura científica não digere bem o diferente, não gosta nem mesmo dos seus. O darwinismo, como a Igreja Católica, não é um edifício teórico monolítico que aparenta ser. São várias as seitas darwinistas: os evolucionistas gradualistas ortodoxos fiéis a Darwin, os neutralistas pouco fiéis como Kimura, e os do equilíbrio pontuado como Gould e Eldredge muito menos fiéis, e agora os execráveis infiéis adeptos da Síntese Evolutiva ampliada que relega um papel inferior à seleção natural. Separadas por questões epistêmicas fundamentais, internamente as seitas darwinistas falam dialetos ou línguas completamente diferentes e, muitas vezes, se odeiam. Literalmente.
Na Nomenklatura científica, ainda predomina um sistema confessional e de casta bem rígido. Literalmente até hoje, não é preciso ter muita competência acadêmica e nem se esforçar para fazer parte da Akademia. Para obter uma posição de destaque acadêmico, basta ter QI [Quem Indica] e confessar a Darwin sem questionamentos. A Confissão de Westminster. As diferenças sócio-acadêmicas entre uma seita darwinista e outra começam pela maneira de dizer Darwin nos artigos, nas conferências, nos simpósios. Cada seita tradicional tem seu próprio sotaque e qualquer darwinista sabe reconhecer o ex-aluno de Down pela maneira como fala.
Da mesma forma, a tradição diz que quem nasce na área perto de Down podem ser ouvidos falando igual a Darwin, com sotaque predominante da classe aristocrática. Já imaginou ser definido sócio-academicamente por toda a sua vida pela maneira como você fala? Nesta semana de louvaminhice, beija-mão e beija-pé de Darwin, a Nomenklatura científica sugeriu um Manual de Guerra de Guerrilhas “Kulturkampf” (Scientific American Brasil, editada por Ulisses Capozzoli) permitindo que os meninos e meninas da Galera de Darwin exerçam com naturalidade o ódio e perseguição aos críticos e oponentes. De agora em diante, eles podem denunciar quem não pronuncia o Shiboleth darwiniano corretamente assim que o diferente pronunciar Shibolet na Academia e na sociedade pluralista e democrática.
Lembra, leitor, quando tudo indicava que o prazo de validade de “1984”, de Orwell, tinha expirado? Com Fukuyama, nós não chegamos a achar que a luta de ideologias e de classes e tudo o que delas emanava havia chegado ao fim? Pois a atual crise teórica é como um bafo rançoso no cangote. Com ela, a intolerância e a xenofobia que estavam dormentes na Nomenklatura científica acordaram. E de mau humor. Em "1984", Emmanuel Goldstein é uma criação do Partido, um inimigo comum que serve para canalizar o descontentamento da população. Ele é um tipo de Guerra das Malvinas, confeccionada pelos generais argentinos para distrair a população de suas reais aflições. Parece incrível que, a esta altura, Emmanuel Goldstein possa ter ressuscitado na Nomenklatura científica. Mas ele voltou na pele de um darwinista cético, um teísta evolucionista, um criacionista, e um proponente do Design Inteligente, sem permissão de transitar na Academia, ameaçando o prestígio da Nova Classe apanhada defendendo dogmas darwinistas não corroborados pelas evidências, mas mantidos a todo custo na defesa de uma ideologia que posa como ciência: o naturalismo filosófico. Por esta ameaça, Emmanuel Goldstein está prestes a ser linchado em praça pública.
Apesar da pouca idade durante a Segunda Guerra, teve gente que colaborou com os “partigiani” levando e trazendo encomendas em uma cesta de piquenique. E viu um de seus primos adolescente ser morto a sangue frio pelos nazistas. Elas assistiram juntas à queda do Muro de Berlim pela TV. A mãe não parecia muito animada.
Perguntaram o que havia e ela disse: “Vai começar tudo de novo”. Aquela mãe pode ter errado o timing, mas não se enganou sobre o fundamental. Está começando tudo de novo.
Emmanuel Goldstein voltou, mas vai reagir como na “Revolução dos Bichos” (Livraria Cultura, mais ou menos R$ 25,00), do mesmo Orwell.
Quem viver, verá!
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Baseado no artigo “Emmanuel Goldstein”, de Bárbara Gancia, Folha de São Paulo, 13 de fevereiro de 2009.
Em “1984”, Goldstein é uma criação do Partido, um inimigo comum que serve para canalizar a insatisfação
VAI COMEÇAR tudo de novo. A Europa não digere bem o diferente, não gosta nem mesmo dos seus. Na Itália, e também na Suíça, cidades separadas por coisa de 40, 50 quilômetros falam dialetos ou línguas completamente diferentes e, muitas vezes, se odeiam.
Na Inglaterra, ainda predomina um sistema de castas. Literalmente até ontem, os filhos da nobreza não precisavam ser eleitos para fazer parte do Parlamento. Para obter uma cadeira na Câmara dos Lordes, bastava que eles se dessem ao trabalho de nascer. As diferenças sociais entre uma casta e outra começam pela maneira de falar. Cada colégio tradicional tem seu próprio sotaque e qualquer inglês sabe reconhecer o ex-aluno de Eton pela maneira como ele fala.
Da mesma forma, a tradição diz que quem nasce na área em que os sinos da igreja St. Mary-le-Bow podem ser ouvidos irá falar cockney, o sotaque predominante entre a classe trabalhadora. Já imaginou ser definido social e culturalmente por toda a sua vida pela maneira como você fala? Na semana passada, os italianos aprovaram uma lei permitindo que os médicos da rede pública de saúde exerçam com naturalidade o ódio aos estrangeiros. De agora em diante, eles podem denunciar quem vive ilegalmente no país assim que o imigrante ilegal pisar no consultório buscando atendimento médico.
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