Marcelo Leite, "Folha de São Paulo", dá uma no cravo e outra na ferradura: louvaminha Darwin, mas elogia Lamarck

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

JC e-mail 3698, de 09 de Fevereiro de 2009

18. Lamarck vive, artigo de Marcelo Leite

Homenagear um cientista é aplicar suas ideias na ciência

Marcelo Leite é autor da coletânea de colunas "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br. Artigo publicado na “Folha de SP”:

Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet de Lamarck (1744-1829) figura entre os mais vilipendiados personagens da ciência. Assim como o Salieri de Mozart, na música, o senso comum o trata como uma besta quadrada, eclipsada pela genialidade de Charles Darwin (1809-1882).

Imagine, supor que características adquiridas possam ser transmitidas para a geração seguinte. Parece piada, hoje: girafinhas nascem com o pescoço comprido porque seus pais se esticavam para alcançar as folhas mais altas. É a seleção natural, estúpido!

Na quinta-feira comemora-se o bicentenário do nascimento de Darwin (e de Abraham Lincoln, mas essa é outra história). Com a avalanche editorial que se avizinha, nada melhor do que prestar homenagem ao grande botânico, químico, meteorologista, zoólogo, paleontólogo e geólogo francês que ficou para a posteridade como um evolucionista fracassado.

A homenagem que se pode fazer a um cientista consiste em aplicar suas ideias para fazer a ciência avançar. Larry Feig, da Universidade Tufts de Boston, prestou portanto um grande tributo a Lamarck com seu artigo no periódico "The Journal of Neuroscience" de quarta-feira passada, mostrando que o pensamento de Lamarck está vivo. Em camundongos.

Não é a primeira vez que roedores lhe prestam serviço. Há dez anos, Emma Whitelaw, da Austrália, mostrou que a cor da pelagem de camundongos variava em função de fatores epigenéticos (não genéticos), pois usara animais com DNA idêntico.

Feig fez mais. Provou que o ambiente em que vivem fêmeas na adolescência -duas a quatro semanas após o nascimento, no caso- afeta não só a própria capacidade de formar memórias (aprender), como também a de seus filhotes. Independentemente do ambiente que a prole enfrentar, na adolescência ou em qualquer tempo.

O grupo de Boston estava interessado na persistência de efeitos benéficos da exposição a ambientes enriquecidos. No caso, gaiolas maiores que as convencionais e cheias de brinquedos, como rodinhas para correr. Já se sabia que isso melhora o desempenho dos camundongos em testes padronizados, como labirintos.

O que não se sabia é que favorece também os filhotes das mães estimuladas. Só das mães, não dos pais. E se trata de algo hereditário, pois o benefício não desapareceu quando fetos de mães estimuladas foram gestados por barrigas de aluguel não estimuladas.

A vantagem não se manifestou, além disso, quando filhotes de mães sem gaiola de luxo foram paridos por mães privilegiadas. E ficou restrita à primeira geração, sumindo nas subsequentes. O ambiente rico não pode tudo, mas o estímulo às roedoras, por outro lado, mostrou-se tão robusto que foi capaz até de reverter a "burrice" induzida em camundongos geneticamente modificados para atrapalhar sua formação de memórias.

O pescoço dos camundongos não ficou mais comprido, só a sua "inteligência". E isso independentemente dos genes do pai ou da mãe. Lamarck puro. Em termos humanos, equivaleria a dizer que a qualidade da educação oferecida a adolescentes do sexo feminino pode ter um peso considerável na capacidade de aprendizado de seus futuros filhos.

Feig evita especular sobre a probabilidade de valer também para humanos essa adaptação que protege contra a privação sensorial. "É possível que seja exclusiva de roedores", admitiu num e-mail. "Há um corpo crescente de evidências de que fenômenos como esse podem acontecer em humanos. Isso é o mais longe que eu posso ir."
(Folha de SP, 8/2)