Maurício Tuffani: O relativismo, o dogma e a banalização

quinta-feira, junho 17, 2010

“As ideias muito possuídas não são mais
ideias, eu nada penso quando as falo.”

(Maurice Merleau-Ponty, O Visível e o Invisível )*
Apesar de parecer para o senso comum um mero exercício de diletantismo, a discussão que iniciei em 26 de maio no jornal Folha de S. Paulo a partir de uma crítica minha ao colunista Antonio Cicero tem implicações diretas sobre temas de fundo da atualidade. Infelizmente, apesar de ter optado por responder ao meu artigo mais recente (“Uma ameaça maior que o dogma”) em seu blog Acontecimentos, ele deixou de aproveitar a vantagem de espaço do formato online em relação ao impresso, limitando suas considerações ao plano do antagonismo entre os argumentos dele e os meus. E, o que é pior, deixando completamente de lado minha provocação para levar a discussão para um plano mais elevado.
A provocação a que me refiro pode ser resumida na afirmação, nesse meu artigo anterior, de que a banalização é uma ameaça maior que o dogma, e pode fazer da própria defesa da liberdade de pensamento um clichê vazio e inócuo. Minha menção à liberdade de pensamento se deveu ao fato de ela ter sido evocada pelo próprio colunista em sua réplica “Heidegger, Descartes e a razão” à minha primeira crítica “O tabu em torno da razão”.
O contexto da discussão

Um desses temas de fundo que afirmo serem diretamente relacionados à discussão em pauta é o chamado multiculturalismo. Sob uma perspectiva relativista, pode-se chegar a concluir, por exemplo, que a ausência dos direitos de cidadania em determinadas sociedades deve ser tolerada e compreendida como uma questão interna delas. Antonio Cicero nega a validade dessa perspectiva, e nisso estou, em princípio, de acordo com ele, que exemplificou esse tema com o caso particular da clitoridectomia imposta por preceitos religiosos, considerada em certos meios intelectuais como uma prática que deve ser tolerada por ser cultural (“A sedução relativa” in: Adauto Novaes [organizador], O Silêncio dos Intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 195).
Algumas interpretações da obra do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) apontam, grosso modo, o pensamento dele como fundamento do relativismo, alegando que ele nega a validade do próprio conceito de razão. Interpretações como essa são feitas tanto por teóricos que concordam com o pensamento heideggeriano como por outros que o contestam.
Discordo da ideia, que não é compartilhada só por Antonio Cicero, de que esse filósofo tenha fundamentado o relativismo e, portanto, a tolerância levada às suas últimas consequências no plano do multiculturalismo. Entendo que essa interpretação é fruto do cenário de banalização de ideias que passou a ser intensificada nas últimas décadas e que afeta os meios culturais, inclusive os acadêmicos.
Apesar de eu concordar com o colunista no que tange ao “silêncio dos intelectuais” sobre temas essenciais — e de discordar de Heidegger em alguns pontos —, entendo que há motivos relevantes para questionar os pressupostos desse autor brasileiro sobre o filósofo alemão. Por exemplo, entendo que o pensamento heideggeriano se contrapõe à razão, às ciências e às técnicas, não para negá-las ou desqualificá-las, mas apenas na medida em que elas se sobrepõem até mesmo ao espaço de uma reflexão que nos distancie dos objetos técnicos, aos quais estamos cada vez mais apegados e submetidos.
Em outras palavras, apesar dos seus desastres de percurso, das críticas procedentes que tem recebido e deverá ainda receber, bem como das equivocadas acusações de paternidade filosófica, entendo o pensamento heideggeriano como um esforço para preservar a reflexão das consequências da incapacidade de as ciências e as técnicas avaliarem o sentido das ações humanas. As implicações dessa incapacidade tiveram uma de suas melhores expressões nas seguintes palavras de Hannah Arendt.
O problema das modernas teorias do behaviorismo não é que elas estejam erradas, mas sim que podem vir a tornar-se verdadeiras, que realmente constituam as melhores conceituações possíveis de certas tendências óbvias da sociedade moderna. É perfeitamente concebível que a era moderna — que teve início com um surto tão promissor e tão sem precedentes de atividade humana — venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu.
(Hannah Arendt, A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp. 335-336.)
Assim como tem acontecido com as obras de outros pensadores, a banalização do pensamento de Heidegger tem provocado não só a distorção de suas conclusões, mas a ocultação de suas interrogações, que é muito mais prejudicial para o pensamento crítico. Antonio Cicero tem razão ao afirmar, com outras palavras, que grande parte do irracionalismo presente na perspectiva relativista de muitos intelectuais está relacionada ao pensamento de Heidegger. Mas entendo que ele se equivoca ao não se dar conta de que isso é fruto da banalização do pensamento desse filósofo.
Em outras palavras, a crítica heideggeriana ao pensamento de Descartes não tem como consequência a validade de qualquer pensamento divergente do cartesianismo. A discussão filosófica do relativismo como visão de mundo, com suas implicações atuais e futuras, passa pela depuração desse equívoco. Mais que uma contraposição à resposta de Antonio Cicero a meu artigo “Uma ameaça maior que o dogma”, o presente artigo pretende oferecer elementos para ao menos manter aberta a questão sobre a relação entre a obra de um dos maiores pensadores do século 20 e o relativismo.

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Leia mais aqui: Laudas Críticas

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