16/3/2010
Por Fábio Reynol
Agência FAPESP – A professora de artes Tatiana Fecchio da Cunha Gonçalves reuniu cerca de 800 imagens de doentes mentais em hospitais psiquiátricos, entre elas algumas registradas por quatro fotógrafos ao longo da segunda metade do século 20 em instituições brasileiras.
O trabalho foi feito para o doutorado no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para o qual contou com Bolsa da FAPESP. Intitulada “A representação do louco e da loucura nas imagens de quatro fotógrafos brasileiros do século 20: Alice Brill, Leonid Streliaev, Cláudio Edinger, Cláudia Martins”, a tese foi defendida e aprovada no fim de janeiro.
Estudo reúne ensaios fotográficos que registraram doentes mentais em instituições de tratamento ao longo da segunda metade do século 20 (reprod.: Henri Fuseli)
“Há um conjunto de construções e elementos formais que tomam o ‘louco’ por diverso, de outra ordem, patológico, a distância”, disse à Agência FAPESP. A inspiração para o estudo surgiu durante o mestrado, quando Tatiana deparou com retratos de doentes mentais registrados por Alice Brill e pelo artista plástico Lasar Segall. “Achei intrigante o interesse deles pelo tema”, disse.
Por meio de um levantamento histórico detalhado, Tatiana recuperou imagens e conceitos produzidos a partir do século 17, quando surgiram os primeiros espaços de internação para doentes mentais.
Segundo ela, a loucura tem sido compreendida de diferentes maneiras ao longo do tempo. No entanto, as suas representações mantiveram alguns aspectos que chegaram até os dias atuais. “É o caso do louco visto como o diferente, o outro, o que deve ser isolado”, disse Tatiana.
Esse distanciamento entre o fotógrafo e o doente chega a ser delimitado em algumas fotos por meio da presença de grades nas cenas com o enfermo atrás delas.
Também são mantidos nas representações mais recentes, segundo a pesquisa, alguns elementos antigos de tipificação da loucura, como o louco melancólico das obras do pintor alemão Albrecht Dürer, no início do século 16, e o louco introspectivo segurando a cabeça, presente na Iconologia do escritor italiano Cesare Ripa no século 17.
Outras representações ainda ressaltam a bestialidade e a agressividade, passando, segundo Tatiana, a ideia de ameaça, como se o louco possuísse uma força imensurável.
Para a autora, muitas dessas imagens, realizadas há séculos, naturalizaram uma forma de compreender o louco como diverso, em sua “carga de alteridade”, segundo ela refere, constituindo ainda no século 20 “a ideia de que o louco deve ser afastado da sociedade”, afirmou.
Tatiana não se deteve na representação artística, tendo investigado também as ilustrações que a medicina produziu para registrar a loucura. Os estudos fisionômicos e as medições de índices corporais, segundo conta, eram utilizados como elementos para diagnósticos e para traçar teorias a respeito da insanidade mental.
“Por esse motivo, a fotografia assumiu uma grande importância para a psiquiatria e para teorias que associavam fisionomias a determinados comportamentos”, disse.
Um desses estudos mais famosos é o do italiano Cesare Lombroso, que associou características e defeitos faciais a comportamentos criminosos. Nesse aspecto, Tatiana ressalta que a fotografia assumiu, pela suposta objetividade do aparato técnico, um reconhecimento importante como instrumento científico.
Reforma psiquiátrica
Na segunda parte da tese, a autora analisa a produção dos quatro fotógrafos que compõem o cerne de seu trabalho: Alice Brill, fotógrafa e artista plástica alemã que retrata o Hospital do Juquery (SP), no ano de 1950; Leonid Streliaev, repórter fotográfico que fez imagens do Hospital São Pedro (RS) em 1971; Cláudio Edinger, que também fotografou o Juquery em 1989 e 1990; e Cláudia Martins, que produziu imagens da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, enquanto era estudante de jornalismo, de 1997 a 1999.
O período desses ensaios corresponde às mudanças provocadas pela reforma psiquiátrica iniciada na década de 1960. Tatiana contou que o fim da Segunda Guerra Mundial trouxe questionamentos à sociedade em relação aos padrões de “normatização”, os quais eram impostos especialmente em instituições como as escolas, as prisões e os manicômios.
“Com a reforma foram questionados os tratamentos da época e a doença mental passou a ser compreendida menos como uma doença dos corpos e mais como um reflexo de dinâmicas sociais”, revelou a pesquisadora.
Paradoxalmente, a autora ainda encontrou na segunda metade do século 20 resquícios da caracterização da loucura de tempos anteriores, o que mostra, segundo ela, que a ruptura com os antigos estigmas não foi tão grande. Outra hipótese é a de que a crítica proposta pela reforma psiquiátrica ainda está em processo, o que ainda deve provocar alterações na forma visual de representação da loucura.
“O fotógrafo [do século 20] ainda não partilha o espaço do fotografado, ele não está no mesmo lugar do outro”, disse. Dentre os fotógrafos estudados há uma tentativa mais explícita de rompimento com essa postura somente no trabalho de Cláudia Martins, segundo a pesquisadora.
“Ela procurou fazer com que os pacientes participassem da construção da imagem, eram eles que escolhiam o pano de fundo do cenário, a pose que fariam na foto e se estariam ou não acompanhados por outros internos”, apontou.
O estudo também traçou as mudanças nas relações da sociedade com os doentes mentais ao longo do tempo. Em 1950, por exemplo, Alice Brill foi aconselhada por amigos a não entrar no Juquery porque estava grávida, sob a justificativa de que os loucos poderiam “influenciar” o bebê. Já as imagens de Edinger, no fim dos anos 1980, trazem um tema inédito em trabalhos desse gênero: a homossexualidade.
Uma das conclusões da autora é a desconstrução do mito da objetividade da fotografia e do fotógrafo, afirmação recorrente no advento dessa técnica. Diante da pintura, a fotografia era tida como descrição exata da realidade a ponto de garantir registros objetivos à medicina, de acordo com a pesquisa.
“Essa objetividade é aparente, a fotografia é composta de escolhas do fotógrafo: onde os objetos serão colocados, quais lentes serão usadas, qual será o cenário, entre outros”, disse. Em todo o material fotográfico analisado está presente a tensão anormalidade/diverso e normalidade/identidade ligados à representação do “louco”.
Esse aspecto foi relembrado por ela e associado às ideias do filósofo francês Michel Foucault, para quem a loucura seria o campo de exclusão social do diverso. A exclusão estaria associada ao advento das cidades, segundo Tatiana. “As cidades exigiram indivíduos muito bem comportados e isolaram quem não se enquadrava em seus padrões, como leprosos, prostitutas e loucos”, disse.
No entanto, ao contrário de outros estigmas, a loucura poderia ser aplicada a qualquer um. Por isso, foi muito usada como instrumento de poder. “Com diagnósticos subjetivos, qualquer comportamento fora dos padrões vigentes poderia ser diagnosticado como loucura”, disse Tatiana. Como exemplo, cita uma mulher internada como louca no Hospital Pedro II, no início do século passado, porque resolveu dissolver o casamento logo após a noite de núpcias.
De acordo com a orientadora de Tatiana, a professora Cláudia Valladão de Mattos, do Departamento de Artes Plásticas da Unicamp, um sinal da qualidade do trabalho foi a sua grande receptividade em instituições internacionais.
“Em países como França e Alemanha, com forte tradição artística, a pesquisa de Tatiana teve uma ótima receptividade”, disse a professora, explicando que o trabalho foi aceito em todos os eventos europeus em que se inscreveu.
“Eles têm muito interesse em conhecer dados sobre o Brasil. O material reunido por Tatiana é considerado raro e importante para a comparação com estudos similares feitos em instituições de tratamento europeias”, disse.
O interesse estrangeiro pelo trabalho ficou evidente durante os dez meses da pesquisa que Tatiana passou na Inglaterra na Wellcome Trust for the History of Medicine da University College London, período no qual contou com bolsa de doutorado com estágio no exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Cláudia também destaca o aspecto interdisciplinar da tese que envolveu arte, história e a medicina psiquiátrica. “A tese também é importante para a história da arte, e abre um campo enorme a ser investigado”, disse.
Tatiana pretende continuar a pesquisa por meio de um pós-doutorado. Dessa vez, quer analisar imagens de vídeo de doentes mentais. “Durante a pesquisa entrei em contato com um material muito grande que pretendo aproveitar agora estudando as imagens em movimento”, disse.