De olho no céu Sobral, 29 de maio de 1919 Há 90 anos, ocorria no Brasil o registro do eclipse solar que deu fama a Einstein
Augusto Damineli Edição Online - 04/05/2009
Pesquisa Fapesp - Neste mês de maio celebramos os 90 anos da prova da deflexão da luz pela gravidade, prevista pela Relatividade Geral. As fotografias obtidas em Sobral, no Ceará, foram fundamentais para isso, mas o fato é ignorado por grande parte da comunidade científica. Ele é particularmente importante por ter tornado Einstein conhecido mundialmente e se tornado um dos maiores ícones de nossa era. É relevante recuperar essa memória, não só para o público brasileiro, mas mundialmente, aproveitando a grande visibilidade do Brasil na Assembleia Geral da União Astronômica Interrnacional (IAU, na sigla em inglês) que se realizará no Rio de Janeiro de 3 a 14 de agosto de 2009.
Na reunião da Royal Astronomical Society de 6 de novembro de 1919 (Londres), o Joint Eclipse Meeting tornou públicos os resultados do eclipse solar de 29 de maio de 1919. A deflexão (encurvamento) da trajetória da luz de uma estrela passando rasante no bordo solar foi de 1.80 ± 0.23 segundo de arco, em excelente acordo com os 1.75 segundo de arco previsto pela Teoria da Relatividade Geral de Einstein. O valor deduzido a partir da teoria da Gravitação Universal de Newton era de 0.78 segundo (supondo que a luz fosse composta por partículas). Essa diferença numérica parece minúscula, mas corresponde a diferentes esquemas conceituais da gravitação, de modo que uma delas devia ser descartada. O matemático britânico Alfred Whitehead descreveu a cena dramática, na sala encabeçada pelo retrato de Sir Isaac Newton, numa atmosfera de pompa e tradição. O mais famoso cientista da história, cuja teoria havia reinado absoluta por mais de 200 anos, era destronado. Em seu lugar subia um cidadão de um país inimigo (Alemanha), contra o qual os ingleses acabavam de ter uma guerra sangrenta de quatro anos, a Primeira Guerra Mundial, que deixara milhões de mortos. No dia seguinte, o Times, mais influente jornal da época (também inglês), espalhava o feito por todo o planeta. Desse dia em diante, Einstein teve uma popularidade jamais vista. Daí até a sua morte, em 1955, ele foi notícia no New York Times em todos os anos e se tornou uma referência de ousadia e fineza intelectual para os cidadãos de todo o planeta. A relatividade geral tomou corpo na física e abriu enormes horizontes para o conhecimento, jamais sonhados antes.
Sobral em 1919: local onde foi observado o eclipse em frente da Igreja Nossa Senhora do Patrocínio
Essa foi uma das situações em que ficou eloquente o grande potencial da astronomia para fornecer testes cruciais para a física. O céu se constitui de um rico conjunto de laboratórios naturais, com limites extremos de gravidade, magnetismo, temperatura, densidade, pressão, etc., que não podem ser reproduzidos na Terra. O telescópio é o instrumento que permite acesso a esses laboratórios gratuitos. Ele já era tão refinado há um século que permitiu medir um desvio tão pequeno nas imagens estelares quanto esse: quase 100 vezes menor que o limite da acuidade visual humana. Hoje, lentes gravitacionais do mesmo tipo da que aqui discutimos permitem detectar indiretamente planetas minúsculos em galáxias vizinhas e revelar a existência da “matéria escura”, entidade mais abundante que a matéria de que somos feitos, ainda desconhecida pela física.
Essa passagem histórica mostra como a ciência é uma atividade humana peculiar, não se submetendo a conflitos políticos ou morais, impiedosa com seus próprios heróis e capaz de reformular seus fundamentos com base em diferenças muito sutis à primeira vista.
O eclipse de 1919 em Sobral e nas ilhas Príncipe
Existe um fato curioso sobre esse evento: as melhores provas do “efeito Einstein” (como era chamada a deflexão da luz pela gravidade) foram obtidas no Brasil, em Sobral, mas isso foi esquecido pela maioria dos autores atuais, que só associam o feito às ilhas Príncipe, no Golfo da Guiné, perto da costa ocidental africana. O próprio Einstein, em passagem pelo Rio de Janeiro, teria reconhecido: “O problema que minha mente formulou foi respondido pelo luminoso céu do Brasil”. A falha de reconhecimento à importância de Sobral precisa ser corrigida, não só porque a demonstração da deflexão aconteceu aqui, mas porque o sucesso da missão inglesa que comprovou a teoria de Einstein se deveu, em parte, ao apoio logístico e levantamentos climáticos feitos por Henrique Morize, então diretor do Observatório Nacional do Rio de Janeiro.
Desde que Einstein publicou suas primeiras ideias sobre uma nova teoria da gravitação, em 1907, alguns cientistas, além do próprio Einstein, vislumbraram a possibilidade de testá-la num eclipse solar. A teoria de Einstein previa uma deflexão da luz em campos gravitacionais, fenômeno incompatível com a teoria de Newton. A idéia de mexer na gravitação não era nada popular, especialmente entre os astrônomos, que usavam a teoria de Newton para “pesar” planetas e estrelas com absoluto sucesso. Para Einstein, o fato de que as equações da mecânica eram incompatíveis com as transformações de (Hendrick) Lorentz (uma das bases teóricas da relatividade) era um problema importante. Ele gozava de certo respeito entre alguns dos grandes físicos da época, mas era pouco conhecido, embora já tivesse publicado sua teoria da relatividade restrita. Houve algumas tentativas fracassadas de medir a deflexão da luz, como a do eclipse de 1912 em Passa Quatro (Minas Gerais). O eclipse solar de 1919 ofereceu as melhores perspectivas até hoje, por ter sido excepcionalmente longo (5 minutos) e pelo Sol ter passado sobre um campo rico de estrelas brilhantes (aglomerado das Hyades).
A missão inglesa, coordenada por Sir Frank Watson Dyson, se compunha de dois grupos: um comandado por Sir Arthur Eddington foi para as ilhas Príncipe e outro, liderado por Charles Davidson e Andrew Crommelin, veio para Sobral (por indicação de Morize). No momento do eclipse, o céu estava nublado em Príncipe, permitindo o registro de apenas seis estrelas. Em Sobral, o céu estava limpo e as placas registraram 12 estrelas. Isso é importante, pois os erros são melhor determinados quanto maior o número de medidas. A equipe que veio a Sobral ficou no Brasil até poder fotografar o mesmo campo estelar à noite, no período de 11 a 18 de julho de 1919. Assim, se pode controlar todas as deformações ópticas do instrumento. A medida das placas fotográficas levou muito tempo, pois é um processo delicado e penoso. Cada equipe mediu separadamente suas placas fotográficas. O valor da deflexão da luz no bordo solar medido por Eddington (ilhas Príncipe) resultou em 1.61 ± 0.30 segundo de arco e por Davidson e Dyson nas placas de Sobral foi de 1.98 ± 0.30. Ambas estavam dentro do valor previsto por Einstein e definitivamente excluíam o valor “newtoniano”. Nunca mais houve um eclipse solar tão favorável quanto esse para medir a deflexão da luz. Nos anos 1990 se tornou possível observar a ocultação de quasares durante fases de Sol calmo com radiotelescópios e os resultados também coincidiram com as previsões de Einstein.
Mitos modernos de manipulação dos dados
Em épocas recentes, se espalharam boatos de que Eddington teria “manipulado” os dados, forjando, assim, provas a favor da relatividade geral. O pressuposto é de que ele seria fervoroso adepto da teoria e, como pacifista, queria fazer uma campanha, onde cientistas ingleses, apoiando um alemão, amainavam os espíritos bélicos. Segundo essa história fictícia, Eddington teria descartado as placas fotográficas de Sobral que favoreciam a alternativa “newtoniana”. Partindo de alguns cientistas de certo renome, essa versão gerou um livro bastante vendido pela Amazon.com, sob a bandeira de “quebradores de mitos”. Um artigo minucioso de Daniel Kenneficke (de 2007) analisa todos os detalhes do evento de Sobral, incluindo a reanálise da placa descartada de Sobral, a única que restou inteira até hoje, de todas as obtidas em Sobral e Príncipe.
O eclipse no Ceará foi registrado por dois instrumentos: um telescópio de 4 polegadas e um astrógrafo (um telescópio fotográfico). De fato, as fotografias tomadas através do astrógrafo em Sobral foram descartadas por Davidson, antes de ele comunicar suas medidas a Eddington. Dyson, que era cético em relação à teoria da relatividade geral, as descartou porque o foco do astrógrafo variou durante a exposição, deixando as imagens das estrelas borradas. Por ser de difícil mensuração, ele só varreu a placa numa direção, obtendo 0.93 segundo de arco. No paper final (Dyson, Eddington e Davidson, de 1920), essa medida é citada, mas com a nota de que era impossível estimar sua incerteza. Para o bem da verdade, se eles tivessem combinado esse valor com os outros dois (1.98 e 1.61 segundo de arco, medidos nas placas de boa qualidade), a média seria ainda mais próxima do valor previsto por Einstein, o que, aí sim, seria criticável. Em 1979, Harvey, usando técnicas modernas, escaneou essa única placa sobrevivente em duas direções e obteve uma deflexão de 1.55 ± 0.34 segundo de arco, em linha com os resultados das melhores placas.
A animosidade moderna contra Eddington parece ser alimentada pelo suposto mau tratamento que ele teria dispensado ao astrofísico indiano Subrahmanyan Chandrasekhar, quando este apresentou sua teoria das anãs brancas nos anos 1930. Mesmo se verdadeiro, esse argumento não seria válido para criticar o empenho de Eddington em testar a teoria de Einstein. Alguns estudiosos da história da ciência fazem críticas mais articuladas a Eddington, por ele ter admitido que os dados do eclipse “provavam” a teoria de Einstein, enquanto eles só eliminavam a de Newton, pois existiam outras teorias concorrentes.
Raros cientistas eram pacifistas, como Eddington e Einstein, naqueles tempos, e esse espírito demorou a ser expresso na comunidade. Um primeiro movimento foi o de retomar as colaborações científicas internacionais, tendo resultado na fundação da União Astronômica Internacional em 1919, da qual Dyson participou ativamente. Mas vale lembrar que, nos primeiros anos, os cientistas alemães não eram convidados para reuniões internacionais, sob os protestos de Einstein.
Para saber mais sobre o assunto:
Filme: Casa de Areia (2005), de Andrucha Waddington.
Artigos: 1) Dyson, F.W., Eddinton, A.S. and Davidson, C. R.: 1920, Philosophical Transactions of the Royal Society, series A 220, 291-330; 2) Kennefick, D., 2007 arXiv:0709.0685v2 [physics.hist-ph]
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