Darwin e o processo de especiação

quinta-feira, maio 21, 2009

Darwin e o processo de especiação

Por Reinaldo Alves de Brito

Estamos celebrando neste ano 200 anos do nascimento de Charles Darwin, bem como 150 anos da publicação de sua obra mais conhecida, o livro "A Origem das Espécies", e o estudo do processo de especiação continua sendo uma das questões principais na biologia evolutiva. Apesar de um grande avanço ter sido alcançado nos últimos anos, em função de metodologias mais robustas, computadores mais poderosos e diversos métodos moleculares modernos, ainda sabemos muito pouco das regras que determinam como tal processo ocorre. Para a grande maioria dos evolucionistas, a especiação não passa de um subproduto da ausência de fluxo gênico entre populações.

"Estudos realizados pelo Laboratório de Genética e Evolução da Ufscar em moscas-das-frutas (A. Fraterculus) demonstram a ação da força de seleção."

Um indicador disso é que o exemplo mais reconhecido de especiação envolve a separação de duas populações por uma barreira geográfica, a chamada especiação alopátrica. Com o tempo, a fixação de mutações independentes nas duas populações fará com que estas venham a divergir, genética e fenotipicamente. Assim que tal divergência seja grande o suficiente para tornar tais conjuntos gênicos reprodutivamente incompatíveis, a especiação terá ocorrido. Claramente não podemos inferir que tenha acontecido seleção direta para a evolução do isolamento reprodutivo nessas populações alopátricas. Tal isolamento é consequência de genes que divergiram, por acaso ou por seleção natural, durante e subsequentemente à especiação. Como cada população que se separa está sujeita a diferentes eventos históricos e pressões de seleção, geralmente considera-se que seriam diversos os genes responsáveis pelo isolamento reprodutivo em diferentes taxas. Talvez por isso, vários marcadores já foram considerados, em uma ou outra época, o "aspecto mais importante a ser investigado para se entender especiação". Contudo, diversos eventos de especiação já foram observados em que não foram detectadas variações em um ou mais desses "aspectos essenciais". Tais estudos não implicam que esses fatores nunca estejam envolvidos em especiação, mas indicam que nenhum deles é de fato imprescindível para todos os modos de especiação.

Uma pergunta que nos interessa é: será que de fato cada especiação é um evento singular ou existem certos genes que são mais propensos a produzir um isolamento reprodutivo? A resposta a tal pergunta começou a ser respondida com a observação que, de todos os marcadores morfológicos investigados em animais, características da genitália externa eram as que apresentavam maior taxa de evolução e, por conseguinte, seriam os marcadores mais indicados para se identificar processos de diferenciação nas populações. Interessantemente, também foi observado que genes associados a reconhecimento e determinação sexual apresentam uma taxa de evolução bastante superior à detectada para outros genes em geral. A melhor hipótese para explicar essa taxa de evolução considera que esses marcadores evoluam em resposta à seleção sexual. Já detectamos que o sucesso reprodutivo de machos está associado a diferenças na habilidade de estimular a fêmea, controlar os eventos da fertilização ou mesmo pela capacidade de deslocar o esperma de machos competidores.

Estudos recentes, inclusive em nosso laboratório (no Departamento de Genética e Evolução, na Universidade Federal de São Carlos), investigando este processo de especiação em moscas-das-frutas do grupo de espécies A. Fraterculus, que são das principais pragas de frutos do País, têm mostrado que diversos desses genes apresentam variação fenotípica e genotípica relativamente grande, fruto da ação de uma força de seleção que favorece a diferenciação (chamada de seleção positiva). Duas populações que estão sofrendo efeitos de seleção sexual provavelmente terão maior divergência em preferências sexuais e, portanto, o resultado natural seria o isolamento sexual dessas populações. Isto tornaria os genes envolvidos nesses processos candidatos naturais a serem importantes em processos de especiação, e por isto utilizamos de estratégias distintas para tentar isolá-los. Essas estratégias envolvem em geral a criação de uma biblioteca dos genes que estão sendo expressos em tecidos reprodutivos de machos e fêmeas e, após sua catalogação, uma avaliação de quais desses genes estariam sofrendo maiores pressões de seleção positiva.

Essas estratégias têm permitido a identificação de diversos genes que de fato estão sofrendo processos de seleção diferenciado e se modificando mais rapidamente do que seria de se esperar por acaso. Um exemplo desses tipos de gene foi descrito pelo grupo do Professor Dr. Chung-I Wu, da Universidade de Chicago, na especiação do grupo de moscas-de-frutas Drosophila melanogaster. Eles identificaram que o gene Odysseus surgiu de uma duplicação in tandem nos ancestrais desse grupo, e enquanto o gene do qual este se originou (unc-4) permaneceu rigorosamente com a mesma composição de aminoácidos durante o processo de diferenciação do grupo melanogaster, o gene Odysseus sofreu um grande número de alterações de aminoácidos que indicam um processo de seleção positiva. Como este caso revela, muitos desses genes de especiação isolados têm indicado um papel importante para genes duplicados que assumem novas funções em diferentes espécies e assim os tornam mais propensos a criar incompatibilidades e um possível isolamento reprodutivo entre espécies distintas.

O estudo dos processos de especiação ainda está limitado, na maioria dos exemplos, a estudos realizados em moscas-de-frutas gênero Drosophila e apenas quando tivermos mais exemplos de grupos distintos poderemos invocar uma maior generalidade para essas conclusões, mas o que estamos vendo é que essas estratégias têm permitido que tais estudos possam ser realizados em quaisquer grupos. Por este motivo, temos a convicção de que os próximos anos nos trarão dados relevantes sobre o papel específico da seleção sexual no processo de especiação e permitirão uma maior generalização do entendimento de processos que começaram a ser desvendados por Darwin há 150 e que ainda nos assombram.

Reinaldo Alves de Brito é professor do Departamento de Genética e Evolução, na Universidade Federal de São Carlos.

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