Pesquisador comenta artigo "Doutores demais e profissionais de menos"

terça-feira, julho 06, 2010

JC e-mail 4046, de 06 de Julho de 2010.

18. Pesquisador comenta artigo "Doutores demais e profissionais de menos"

"Não há excesso de doutores no Brasil. Há, sim, falta de uma política de desenvolvimento cultural, social e econômico que promova a formação acadêmica mas que, simultaneamente, ofereça oportunidades e condições de trabalho aos titulados"

Leia a mensagem de Fernando Dias de Avila Pires, pesquisador aposentado do Departamento de Medicina Tropical do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz e professor voluntário da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC):

"O artigo em que Wanderley Messias da Costa cita a frase "O país tem problemas sérios nas relações do universo acadêmico com o mercado de trabalho" resume o relatório do Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE) "Doutores 2010: estudos da demografia da base técnico-científica brasileira, facilmente encontrado na internet (http://www.cgee.org.br/), que aponta para o descompasso entre a pós-graduação e o mercado de trabalho no Brasil.

É compreensível que "especialistas asseguram que hoje em dia grandes empresas preferem recrutar estagiários ou jovens recém-formados que, após rigorosa seleção e na condição de trainees, receberão formação e treinamento complementares."

Também eu, se precisar submeter-me a uma cirurgia de coração, vou preferir um cirurgião que foi assistente durante cinco anos de um dos nossos grandes cirurgiões cardiovasculares, ao jovem autor de uma brilhante tese de doutoramento sobre fatores genéticos nas cardiopatias graves. Mas o avanço dos conhecimentos responsáveis pelos avanços da medicina moderna - e o sucesso de minha cirurgia - dependem de estudos teóricos e acadêmicos, muitos deles sem aplicações práticas imediatas. E suscitam questões éticas e morais que são analisadas em profundidade por sociólogos e filósofos.

Um colega do Museu de História Natural de Nova Iorque, antropólogo de renome, relatou-me um incidente ocorrido em um pequeno hotel no interior dos Estados Unidos, onde se hospedara. Como não é raro acontecer, alguém passou mal e telefonou para a gerência à procura de um médico: haveria algum doutor no hotel? A resposta do gerente foi definitiva e ingênua: "Yes, there's a doctor, but he's the kinda doctor who's no good for nothing" (sim, mas é o tipo do doutor que não serve para nada).

Temos um bom sistema de pós-graduação, como reconhece o relatório do CGEE, o qual compreende um mestrado voltado à formação de docentes e um doutorado que visa ao preparo de pesquisadores. Os cursos de especialização, por sua vez, direcionam-se para o mercado de trabalho. O sistema pode ser sempre aperfeiçoado, mas sem que seja desvirtuado de seus objetivos.

Não há excesso de doutores no Brasil. Há, sim, falta de uma política de desenvolvimento cultural, social e econômico que promova a formação acadêmica mas que, simultaneamente, ofereça oportunidades e condições de trabalho aos titulados, como o fizeram a Coreia, a Tailândia e os demais tigres asiáticos.

O descompasso entre a formação acadêmica e a preparação de especialistas para a indústria, se existe, não se resolve com o desvirtuamento de objetivos de um sistema bem sucedido e que vem cumprindo seus objetivos. Aliás, a exigência de titulação do corpo docente das universidades privadas, por exemplo, não é cumprida.

É fácil de compreender o que a falta de uma política de desenvolvimento integrado pode ocasionar, com uma analogia simplista. Basta imaginarmos uma cozinha sem um chef.

Há um sous-chef perito em sobremesas, um especialista em saladas, um notável assador de carnes e outro criativo em matéria de frutos do mar. Mas o resultado é desalentador e o estabelecimento não se sustenta. As sobremesas ficam prontas antes dos pratos salgados e em maior número do que o de prospectivos clientes não diabéticos. As saladas murcham por terem sido preparadas antes da hora. O fornecedor de vinhos chega tarde, por falta de pedidos programados e providenciados a tempo. E a cozinha funciona como uma orquestra sem maestro - ou como um conjunto de boas iniciativas independentes, mas sem uma política de integração definida."

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