“Evolução e religião”: desviando os holofotes das insuficiências heurísticas da teoria da evolução de Darwin – Parte 2

quinta-feira, outubro 22, 2009

“Evolução e religião”: desviando os holofotes das insuficiências heurísticas da teoria da evolução de Darwin – Parte 1

Para exemplificar a similaridade genômica estrutural e funcional do DNA, Pena usou a pesquisa de Túlio M. Santos, um aluno do seu laboratório de pesquisa, que desenvolveu tese de doutorado sobre o gene chamado SmRho isolado do verme Schistosoma mansoni (o parasita causador da esquistossomose, doença que aflige centenas de milhões de pessoas em todo o Terceiro Mundo).

A tese de Santos: verificar se o SmRho era funcionalmente o mesmo gene homólogo bem conhecido no Saccharomyces cerevisiae. Para verificar isso, eles usaram primeiramente técnicas de engenharia genética (engenharia reversa = design inteligente?) para deletá-los das leveduras: elas se tornaram incapazes de se dividir e de formar colônias.

Após transferirem para as leveduras doentes o gene SmRho do parasito, Pena não se conteve e exclamou (no artigo do Ciência Hoje On-Line) a la Arquimedes — Eureca! Elas cresceram novamente e formaram colônias quase normais. QED: o gene Rho do verme funcionava perfeitamente na levedura, mesmo separado evolucionariamente há centenas de milhões de anos. Pena não nos disse como que esses ‘milhões de anos’ foram aferidos na pesquisa de Santos que levou tão pouco tempo para ser realizada.

Eu não consigo ver como o argumento acima fornece evidência robusta para corroborar duas principais afirmações do darwinismo — ancestral comum universal e a suficiência dos processos naturais não guiados como a variação e a seleção.

Eu não gosto de analogias. Nem Darwin gostava, e disse por que não gostava, mas usou-as no Origem das Espécies. Ora, se Darwin usou, por que não posso usá-las? Se a gente pegar um motor de Fusquinha e colocá-lo numa Ferrari sem motor, e após virar a chave, a Ferrari começa a rodar, isso não significa que as Ferraris descenderam com modificação a partir de um Fusquinha, por acaso e através de processos não guiados.

O que está por detrás do argumento de Pena? Eu não sei, mas vou ser pitônico. Ele quis trazer à baila subliminarmente a afirmação teológica de que um deus benevolente não teria planejado intencionalmente o Schistosoma mansoni para causar a doença da esquistossomose e afligir centenas de milhões de pessoas em todo o Terceiro Mundo. Ou simplesmente querer demonstrar nossa humilde origem evolutiva.

Ora, Pena, a humanidade nem precisava de Darwin para saber da sua origem humilde. Eu já li em algum lugar: revertaris in terram de qua sumptus es quia pulvis es et in pulverem reverteris...

Se foi isso, o argumento de Pena não é um argumento científico para explicar a origem darwiniana do SmRho. Razão? A abordagem normal da ciência empírica não é argumentar contra opiniões teológicas, mas propor um mecanismo testável que explique como as espécies diferentes adquiriram características homólogas. O Origem das Espécies é um longo argumento teológico como veremos mais adiante.

O mecanismo proposto pela Síntese Evolutiva Moderna é a herança de genes similares a partir de um ancestral comum: os genes transportam informação de uma geração para a outra, e eles ‘dirigem’ o desenvolvimento embrionário. Já em 1971, Gavin de Beer escreveu: “Pode ser considerado que a genética forneceria a chave para o problema da homologia. É aqui que o pior de todos os choques é encontrado,” porque “os caracteres controlado pelos genes idênticos não são necessariamente homólogos... [e] as estruturas homólogas não precisam ser controladas por genes idênticos.” De Beer concluiu que “a herança de estruturas homólogas a partir de um ancestral comum... não pode ser atribuído à identidade de genes.” [1]

Darwin (o ópio da ciência?) e a religião (o ópio do povo?)

Pena, cientista que precisa estar atualizado na literatura científica deveria saber: a questão hoje em dia não é se as especulações transformistas de Darwin contrariam relatos de criação de textos sagrados, mas se suas hipóteses são corroboradas no contexto de justificação teórica. Com este parágrafo, ele iniciou o desvio dos holofotes das insuficiências heurísticas da teoria da evolução de Darwin.

Contrariando Pena, nem todas as pessoas ficaram sabendo que em 2009 foram comemorados 200 anos do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos da publicação do Origem das espécies. Até na Inglaterra, berço de Darwin, 8 entre 10 ingleses nem sabia disso. Vide Theos Darwin's Anniversary Poll November 24th 2008.

Imagine o quão despercebido Darwin passou entre 10 brasileiros...

Concordamos com Pena: em 2009 nós fomos literalmente bombardeados não somente pela grande imprensa, mas até por publicações científicas, com uma miríade de artigos louvaminhando Darwin como grande cientista. Não seria melhor apresentar Darwin como um bom compilador de ideias de terceiros?

Nós discordamos de Pena que a vasta maioria desses artigos contendo afirmações bombásticas e errôneas, tenha sido escrita por pessoas que nunca leram Darwin e nem entendem de genética evolucionária: a Nomenklatura científica foi mais do que pródiga nas celebrações nauseabundas com exposições em descompasso com a verdade histórica (Darwin MASP/Instituto Sangari, 4 de maio a 15 de julho de 2007), com conferências, simpósios, seminários, edições especiais de revistas de divulgação científica popular. Sobre o descompasso com a verdade histórica da exposição Darwin no MASP vide aqui, aqui e aqui.

Pena salientou que um dos pecados sensacionalistas daquelas pessoas ignorantes foi afirmar que “Darwin matou Deus”. Besteira pura, disse ele, só que esta besteira pura foi manchete de capa da revista Superinteressante (Junho de 2007), uma das maiores revistas brasileiras de divulgação científica popular!

Para entender a relação de Darwin e da evolução com a religião, Pena fez um desvio pela física, com uma história contada pelo astrofísico americano Neil de Grasse Tyson, do Museu Americano de História Natural de Nova Iorque no artigo “O perímetro da ignorância” (“The perimeter of ignorance”). Um artigo nada brilhante, mas mesmo assim publicado em 2005 na revista Natural History.

A lei da gravidade, desenvolvida pelo genial Isaac Newton (1643-1727), permite calcular a força de atração entre dois corpos celestes, e traçar as órbitas dos planetas em torno do Sol. Os planetas também exercem forças de atração entre si. Plutão, que desde 2006 nem é mais considerado um planeta, exerce gravidade sobre a Terra. Tudo isso cria uma rede de atrações mútuas que modifica as órbitas dos planetas e é extremamente difícil de computar.

Newton tentou lidar com tudo isso em suas equações, e concluiu que o Sistema Solar era muito instável, e que os planetas deveriam ter se precipitado sobre o Sol (o que obviamente não tinha acontecido). No Principia mathematica, sua obra mais importante, ele escreveu em 1687: “Não é possível conceber que meras causas mecânicas possam gerar tantos movimentos regulares... Este maravilhoso sistema... só poderia operar sob o domínio de um Ser poderoso e inteligente”.

A visão que Newton tinha do universo era mecanicista: o universo era um ‘relógio cósmico’, e Deus intervinha de vez em quando para estabilizar as órbitas irregulares dos planetas quando passam perto de outros planetas ou cometas para evitar que o universo entrasse em colapso. Muito antes de Laplace, Tyson e Pena, Newton foi duramente criticado por Leibniz: Deus era incompetente por ter criado um universo imperfeito e que necessitava de sua intervenção para eventuais reparos.

A história da ciência nos conta que esta visão newtoniana limitada e errônea, prevaleceu por mais de um século, até que em 1825, Pierre-Simon de Laplace, na França, conseguir provar matematicamente a estabilidade do Sistema Solar em seu tratado em cinco volumes Mecânica celeste. Pena trouxe à baila uma lenda: Napoleão Bonaparte leu a obra, e teria perguntado a Laplace por que não havia nenhuma menção a Deus. Laplace teria respondido: “Je n'avais pas besoin de cette hypothèse-là” [“eu não tinha necessidade de tal hipótese”]!

Uma pergunta indiscreta: se é lenda, por que Pena, o cientista, lança mão deste argumento lendário para enfraquecer outras posições?

Eu discordo de Pena, em parte, de que o mesmo se passou com Darwin. Por um lado, pela distinção entre a ciência de Laplace (empiricamente confirmada) e a teoria geral da evolução através da seleção natural de Darwin (até hoje não corroborada pelas evidências). Por outro lado, Darwin realmente em momento algum propôs a inexistência de Deus, mas foi contundente em afirmar não ter necessidade desta hipótese para explicar a origem dos seres vivos e a grande variedade de espécies no mundo natural.

Destaco aqui uma carta de Darwin para Lyell, sobre o entendimento de Asa Gray de que a evolução era um processo teleológico. Darwin escreveu: “If I were convinced that I required such additions [God] to the theory of natural selection, I would reject it [the theory of natural selection] as rubbish”. DARWIN, F. 1899, Life and Letters of Charles Darwin 2:6-7, New York, D. Appleton and Co.

Apesar de possuir as seis edições do Origem das Espécies em inglês, eu não localizei este parágrafo atribuído a Darwin por Pena: “Existe um desenho aparente nos organismos vivos. Mas a seleção natural é suficiente para explicar isto. Não é necessária a hipótese da existência de um desenhista” [?!?!?!]. Gostaria de saber de onde Pena tirou esta citação. Não teria sido de uma das cartas de Darwin? Ou de seus outros livros?

(Qual) Evolução e (qual) religião?

O longo argumento teológico exarado por Darwin no Origem das Espécies deve explicar esta ‘fixação’ dos seus discípulos com a temática evolução-religião. Com este outro parágrafo, Pena continuou o desvio intencional dos holofotes das insuficiências heurísticas da teoria da evolução de Darwin.

Ele afirmou que a evolução através da seleção natural é perfeitamente compatível com a crença na existência de Deus. Mas de qual evolução Pena está falando? Ele não disse. Microevolução? Macroevolução? A primeira não é problema para os criacionistas, e muito menos para os teóricos e proponentes da teoria do Design Inteligente. De qual Deus Pena está se referindo? Ele não disse.

Não navego nessas águas retóricas, mas vou dar uma de advogado do Diabo dos teístas: se for o Deus do creatio ex nihilo, das religiões monoteístas como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, não existe compatibilidade. Isso, Pena, se formos honestos e fiéis para com Deus e Darwin. Nem que a vaca tussa! Lembre-se, Darwin escreveu alto e bom para Lyell que, se precisasse de ‘ajuda externa’ [Deus?], a sua teoria da evolução através da seleção natural seria “rubbish” [titica de galinha]!

Pena disse que os evolucionistas estão preocupados em entender a geração da diversidade dos seres vivos na Terra e não têm qualquer desejo — ou tempo —para se intrometer em problemas espirituais. Será? Interessante notar que os darwinistas se preocupam muito com este aspecto evolução-religião. Tanto que Pena se ocupou com estas subjetividades teológicas no seu artigo.

Uma leitura objetiva e desapaixonada do Origem das Espécies revela: o livro é ‘um longo argumento teológico’. Embora Darwin tenha relacionado muitos fatos da natureza, seus argumentos foram basicamente teológicos. Exemplo: os fatos da natureza são “inexplicáveis pela teoria da criação” [e outras expressões quase idênticas], e que isso só faz sentido através da teoria da descendência com modificação.

Então é por isso que artigos como o de Pena sobre a controvérsia do darwinismo envolva sempre a teologia e filosofia. Razão? As duas já estavam lá desde 1859. Na pesquisa que estou realizando sobre ‘o longo argumento teológico’ de Darwin, eu já encontrei os seguintes argumentos teológicos no Origem das Espécies:

Caps. II (p. 50), IV (p. 99), V (p. 105, 113, 115, 117, 122), VI (p. 132, 141, 143-144, 147, 150), VIII (p. 208), IX (p. 231), XI (p. 257-258), XII (p. 281, 282, 283, 290, 293), XIII (p. 304, 305, 307, 308, 310, 314), XIV (p. 323, 334, 335-336, 350), e o XV (p. 360, 361, 362, 363, 365, 366, 367-368, 369, 373).
Darwin, Charles. The Origin of Species. Sixth Edition. London: John Murray, 1872. Disponível online (2008) aqui.

Por que tanta teologia no Origem das Espécies? Será que seria permitida a leitura deste livro em salas de aulas de ciência do ensino médio no Brasil? Sem nenhum problema de infringir a laicidade do Estado e o ensino de ciência em aulas de ciência?

Pena parafraseou Galileu Galilei, um criacionista, para defender os evolucionistas e atacar os de subjetividades religiosas, que a preocupação de quem estuda a evolução é entender como as coisas andam na Terra e não como se ganha o céu... Só que a analogia de Galileu, não é uma analogia científica, é filosófica.

Concordo e discordo de Pena — não são apenas algumas denominações protestantes fundamentalistas que fazem uma interpretação literal estrita, criacionista, do livro do Gênesis na Bíblia que rejeitam em princípio a evolução biológica: há muitos cientistas de peso que rejeitam aspectos fundamentais da teoria geral da evolução. Alguns são membros de Academias de Ciência. [Faça download da lista Darwin’s dissent aqui].

Realmente aqueles criacionistas acreditam que Terra (e todo o universo) tem menos de 10 mil anos (danem-se os dinossauros e toda a evidência fóssil) e que Deus criou o homem diretamente. Pena não ‘acredita’ nada disso, daí a ironia através do ponto de exclamação! Desde quando a ironia faz parte da argumentação científica?

Pena citou o livro Os anais do velho testamento, do bispo inglês James Ussher publicado em 1650, que calculou a criação do universo por Deus na véspera do dia 23 de outubro de 4004 a.C. Até onde eu sei a Bíblia não faz tal afirmação esdrúxula e Pena, o cientista que deve seguir a verdade, somente a verdade e nada mais do que a verdade, está em flagrante descompasso com a verdade daquele texto religioso antigo: ele é silente nesta questão.

Como interessava destacar o ‘fundamentalismo’ dos cristãos americanos, Pena mencionou que até o final dos anos 1970 as Bíblias colocadas em quartos de hotel nos Estados Unidos pela Gideon Society contendo essa estimativa, e que fez parte da arguição a que Clarence Darrow submeteu William Jennings Bryan no famoso julgamento de Scopes, no Tennessee, em 1926.

Pena desconhece, mas Bryan não era ‘fundamentalista’ e acreditava na Terra antiga. E, mais importante: foi membro da American Association for the Advancement of Science [A SBPC dos gringos].

Concordo com Pena: o famoso julgamento do macaco [Monkey Trial] foi importantíssimo na história do desenvolvimento do ensino de evolução nas escolas públicas nos Estados Unidos. Discordo de Pena: o filme O vento será sua herança (1960), com Spencer Tracy, contando a estória do julgamento de forma ficcional, mão é um filme historicamente excelente: é uma distorção despudorada do que realmente aconteceu naquele julgamento.

Somente para ilustrar. Pena deu a entender na legenda da argüição de Darrow que Bryan acreditava no cálculo feito pelo bispo inglês James Ussher de que Deus criou o universo na véspera de 23 de outubro de 4004 a.C., conforme a interpretação errônea do bispo Ussher. Na arguição Bryan deixou bem claro que aceitava longas eras para a idade da Terra e do universo.

Pena deveria ter sido mais criterioso na seleção das fontes e na elaboração do seu artigo sobre a controvérsia evolução-criação-design inteligente publicado com destaque no Ciência Hoje On-Line, destacado no JC E-Mail e na Academia Brasileira de Ciências.

Para os interessados em saber o que foi realmente o “Monkey Trial”, e não depender de artigos ideologicamente enviesados, recomendo o seguinte:

LARSON, Edward J. Summer for the Gods: The Scopes Trial and America’s Continuing Debate over Science and Religion, New York, Basic Books, 1997 ( A Pulitzer Prize em 1998).

Um site sobre o Monkey Trial

Uma comparação do julgamento e as distorções do filme “O vento será sua herança”

Em tempo, John Scopes favorecia o ensino de outras visões...

NOTA:

PATEL, Nipam H., BALL, Eldon E. and GOODMAN, Corey S., “Changing role of even-skipped during the evolution of insect pattern formation,” Nature 357 (1992): 339-342. “It might be thought that genetics would provide the key to the problem of homology. This is where the worst shock of all is encountered,” because “characters controlled by identical genes are not necessarily homologous... [and] homologous structures need not be controlled by identical genes ... “the inheritance of homologous structures from a common ancestor... cannot be ascribed to identity of genes.”

Abstract online (2008)aqui.

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1. Para outras pesquisas e artigos assim, vide ALMEIDA FILHO, E. E. “A sugestão de Edgar Morin para o ensino das incertezas das ciências da evolução química e biológica — uma bibliografia brevemente comentada”, in Anais do II Congresso Nacional de Licenciaturas 2009, Universidade Presbiteriana Mackenzie. Neste trabalho, mais de 100 pesquisas e artigos abordam as ‘zonas de incertezas’ das ciências da evolução química e biológica que Edgar Morin sugeriu a UNESCO fossem ensinadas.

2. Solicitamos ao editor executivo do Ciência Hoje On-Line, Bernardo Esteves, a publicação desta réplica. Lamentavelmente réplica a artigos ali publicados "não se alinha com a orientação editorial das publicações do Instituto Ciência Hoje".