JC e-mail 3877, de 27 de Outubro de 2009.
6. Do mundo ideal da "comunidade científica" ao mundo real das "coletividades heterogêneas de pesquisadores", artigo de Carlos José Saldanha Machado
"Não basta possuir um atributo comum para formar uma comunidade, é preciso que exista, no mínimo, um reconhecimento mútuo deste fato"
Carlos José Saldanha Machado é antropólogo e pesquisador da Fiocruz e do CNPq. Artigo enviado pelo autor ao "JC e-mail":
Ao longo dos últimos 15 anos, enquanto desenvolvia outras atividades de pesquisa, observei a dinâmica do processo de produção de conhecimentos científicos em duas instituições públicas de pesquisa (IPPs), uma da área de ecologia tropical, outra de biomedicina, uma situada na região Norte (observações feitas entre 1993 e 1994), outra na região Sudeste (observações feitas entre 2003 e 2008).
Ao término dessas observações, financiadas com dinheiro público, fui conduzido a substituir o conceito de "comunidade científica" ou "comunidade de cientistas" pelo de "coletividade heterogênea de pesquisadores" para poder apreender e nomear a forma de vida associativa praticada pelos pesquisadores dos dois espaços brasileiros de produção de conhecimentos científicos.
O conceito de comunidade científica utilizado pelos pesquisadores entrevistados é uma mistura das conceituações do pai da sociologia clássica da ciência, Roberto Merton, e do físico e historiador da ciência Thomas Khun.
A conceituação de Roberto Merton baseia-se em regras, valores e normas internas compartilhadas pelos cientistas que ele identificou, nos anos 40 do século passado, com base na leitura de um número limitado de textos produzidos por grandes cientistas sobre seus próprios trabalhos.
Com base nesses textos, Merton selecionou alguns enunciados para identificar, então, quatro normas éticas como princípio universal da atividade científica, uma espécie de arquétipo definindo os comportamentos admissíveis: o universalismo (os critérios de avaliação devem ser impessoais), o comunalismo (as descobertas são bens coletivos), o desinteresse e o cepticismo organizado. Esse ethos tornou-se possível pelos mecanismos de reconhecimento e de recompensas que motivam e controlam os indivíduos.
A crítica metodológica que se pode fazer ao modelo mertoniano é que o sociólogo não se deu conta que aqueles textos que ele analisou apresentavam uma visão idealizada da ciência construída pelos cientistas, pois era a imagem pública do cientista que estava em jogo num contexto de disputas acadêmicas e de relações com as instâncias econômicas e políticas de financiamento das pesquisas. O fato desses cientistas se referirem às normas não significava que elas fossem aquelas praticadas por eles no exercício de suas profissões ao longo do tempo.
Por sua vez, 25 anos depois, Thomas Kuhn caracterizou "comunidade científica" como uma maneira semelhante de conceber e de perceber o mundo por um paradigma. Um paradigma encarna um quadro conceitual através do qual o mundo é visto e descrito, ele é composto igualmente de técnicas experimentais e teóricas.
Mas não basta possuir um atributo comum para formar uma comunidade, é preciso que exista, no mínimo, um reconhecimento mútuo deste fato, reconhecimento que inexistia nos dois espaços observados de produção de conhecimentos científicos.
As expressões "comunidade científica" ou "comunidade de cientistas" utilizadas pelos próprios pesquisadores para qualificar suas vinculações comuns a uma organização estruturada, geradora de atitudes e de condutas comuns não fazia sentido porque conduziam a complexidade da vida científica cotidiana a uma depuração conceitual.
Ao contrário da conceituação idealizada por Robert Merton e Thomas Khun, em ambos os espaços que eu pude observar estava na presença de disparidades, de incompreensões, de tensões constantes, de repovoamentos sucessivos, de relações de "boa vizinhança", de patrimonialismo, de relações amorosas diversas, de personalismos, de conflitos de interesse, de acertos de conta, de permanente recomposição e mistura de vozes que se transformavam numa sóbria cacofonia de ações, de mal entendidos e de refutações, mas que se erguiam, com freqüência, até a saída de correções mútuas e de críticas severas.
Confrontado, portanto, a uma realidade contingente e heteróclita, que é também a de inúmeros espaços universitários brasileiros, e procurando sintetizar e qualificar o tecido e a dinâmica da trama social observada, passei a me referir àqueles espaços de vida científica como "coletividades heterogêneas de pesquisadores".
Era preciso reconhecer que os pesquisadores ao fazerem uso recorrente da expressão "comunidade científica" estavam fazendo uma evocação nostálgica a um mundo ideal de convivência profissional face à uma real falta de solidariedade rotineira entre todos eles.
Por detrás de um plano topográfico e de um organograma daqueles espaços das áreas de ecologia tropical e de biomedicina se desenhava a massa espessa e viva de redes de relações, de situações singulares, de interações e inter-relações que faziam viver as coletividades heterogêneas de pesquisadores à maneira de um rizoma, destituído de um centro, uma coleção de pesquisadores individuais, ou ainda, como uma soma de parcelas reagrupadas no interior de uma fronteira comum onde cada pesquisador detinha um poder soberano.
Cada um era mestre de seus lugares, de suas alianças, de suas afinidades eletivas, além de serem obrigados a conhecer e a lidar, cotidianamente, com dispositivos legais que regulamentam o processo de compras públicas a fim de buscar soluções diante das especificidades dos pedidos de compras de insumos imprescindíveis à produção de conhecimentos que serão publicados, em inglês, em revistas com altos índices de impacto.
Ambos os espaços (IPPs) eram matrizes onde se formavam os lugares (laboratórios, departamentos, serviços, unidades) com suas fronteiras porosas que permitiam os pesquisadores deslocarem-se em direção a outros locais de pesquisa dos mundos científicos. Isto significa dizer que a dimensão horizontal dos lugares que davam sentido e profundidade, predomina sobre a dimensão vertical das instituições públicas de pesquisa.
Ambas as IPPs são somente o reflexo das contradições da época que atravessamos, dos debates que agitam o Brasil e o mundo, o espelho de uma sociedade de diferenças que experimenta, mas que ainda não consolidou e incorporou formalmente as regras praticadas, um lugar onde as trocas definem somente prováveis caminhos.
Mas não se deve subestimar o desejo de dignidade e a aspiração de ser respeitado que permeia essas coletividades. Eis uma das razões pelas quais no momento mesmo em que o leitor tenha terminado de ler este pequeno texto várias situações e práticas que observei terão mudado ou desaparecido da cena histórica.