JC e-mail 3876, de 26 de Outubro de 2009.
22. Meio sem ambiente
Recém-aposentada da Universidade de Chicago, Manuela Carneiro da Cunha ataca o desenvolvimento "antiquado" do país, que deixa em segundo plano a qualidade de vida, e diz que Nobel da Paz a Obama foi "desabafo anti-Bush"
Caio Liudvik escreve para a "Folha de SP":
Um dos nomes mais importantes da antropologia brasileira, Manuela Carneiro da Cunha (1943) é uma autora de leitura indispensável para quem quiser entender a fundo a questão indígena no Brasil.
Professora aposentada da Universidade de Chicago desde julho passado, ela comenta, em entrevista exclusiva concedida à Folha, temas como a política indigenista do governo Lula e da Igreja Católica pós-Bento 16. Ela fala também do significado da outorga do Nobel da Paz para o presidente Barack Obama e também comenta sobre a internacionalização da Amazônia -"esse risco existe".
Carneiro da Cunha também explica seu mais novo livro, "Cultura com Aspas" (Cosac Naify, 440 págs., R$ 69), conjunto de ensaios que oferecem panorama abrangente de sua produção intelectual ao longo das últimas duas décadas.
A obra deixa muito evidente a fina sintonia, na trajetória da antropóloga, entre pesquisa acadêmica e aguerrida militância política em favor dos direitos das populações nativas do Brasil.
Isso inclui não só as clássicas questões da terra e das condições materiais de subsistência, mas também o respeito aos direitos de propriedade intelectual das tribos. São exemplos disso remédios desenvolvidos ao longo de séculos de imersão no ecossistema amazônico e que são cobiçados pela multinacionais farmacêuticas. Para Carneiro da Cunha, o Brasil pode estar dando início a um modelo de desenvolvimento "antiquado e predatório", que coloca em segundo plano o homem e o ambiente.
- Como é que a pesquisa acadêmica e a militância política se articulam em seu percurso?
Só me meti em militância política tarde, e em questões que até o advento da popularidade de Gramsci, eram consideradas periféricas -índios, por exemplo. Mas a experiência política foi extremamente importante para meu amadurecimento. Várias de minhas pesquisas, como sobre direito indigenista e sobre história indígena, foram diretamente suscitadas pela importância política dos temas. Mas não há nem nunca houve uma relação simples entre percurso intelectual e militância política, e reflito até sobre isso no último ensaio do livro. Pesquisar, afinal, significa não saber as respostas de antemão e implica em seguir a própria curiosidade por caminhos que não estão de antemão traçados. A militância dificilmente pode se dar esse luxo. Guardadas as devidas proporções, lembro-me sempre de Jean-Pierre Vernant [1914-2007], líder da Resistência durante a Segunda Guerra Mundial e militante comunista, que decidiu ser helenista -ainda bem- para tratar de coisas em que o Partido [Comunista] não pudesse meter o bedelho. Mas isso não resolveu completamente o problema: o simples fato de analisar a categoria do trabalho na Grécia antiga atraiu-lhe a ira e o patrulhamento do PC francês.
- A sra. vê risco de internacionalização da Amazônia?
Acho que esse risco existe -e existiu sobretudo no período áureo da borracha- e que até talvez já tenha deixado de ser risco para ser um fato consumado. Já se fez o levantamento dos interesses, investimentos e terras de companhias estrangeiras na Amazônia? Já se pensou no que pode acontecer se esses interesses se virem ameaçados ou contrariados? Até agora, parece-me que se olhou na direção errada. Usa-se o risco à soberania nacional como um espantalho para fins de outra natureza -por exemplo para contestar o direito dos índios às suas terras.
- Como a senhora avalia o tratamento pelo governo Lula à questão dos direitos indígenas?
Por um lado, há que louvar sua coragem política, decidindo, por exemplo, homologar a terra indígena Raposa/Serra do Sol, contra a bancada roraimense e outros interesses -e defendendo sua posição diante do STF. O ministro Tarso Genro [Justiça] tem também sido muito ativo na declaração de terras indígenas, embora o que importe do ponto de vista prático é a finalização do processo de homologação. Isso posto, o PAC, a opção por uma política de desenvolvimento à moda tradicional, isto é, pelo modelo exportador de commodities e de expansão da infraestrutura energética e rodoviária para servi-lo, deixa as questões ambientais e indígenas forçosamente em segundo plano. Em caso de conflito, elas perdem. Outro setor preocupante é o do atendimento à saúde indígena, que se deteriorou muito desde o primeiro mandato do Lula. Houve mudanças que parecem ter elevado os custos e baixado a qualidade.
- Mas a ministra Dilma Roussef argumenta que, por mais importante que seja, a questão ambiental não pode trazer entraves para o desenvolvimento econômico. O que a senhora pensa disso?
Depende do que se entende por desenvolvimento, se é o aumento global do PIB ou melhor qualidade de vida para a população e para as gerações futuras. Hoje, os países da Europa ocidental só falam em desenvolvimento sustentável e Índice de Desenvolvimento Humano. Hoje, existe mercado de crédito de carbono, além de outros mecanismos para valorizar a floresta. Por que o Brasil tem de seguir tardiamente um modelo de desenvolvimento antiquado e predatório? Por que, para fornecer commodities, temos de acabar com outros recursos importantes para nosso futuro?
- Uma candidatura presidencial como a de Marina Silva terá chance se colocar como tema mais importante a questão ambiental?
A candidatura de Marina Silva é um fato político novo e teve de saída a virtude de colocar a questão ambiental na pauta do debate dos candidatos à Presidência. Mas, de forma realista, se a mídia confinar sua candidatura como sendo apenas ambiental, provavelmente reduzirá suas chances eleitorais.
- Com a reversão ideológica conservadora que se nota na Igreja Católica dos últimos anos, em especial após a ascensão de Bento 16, é possível notar mudanças na atuação eclesiástica no campo dos direitos indígenas?
É verdade que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), parece estar mais moderado. Mas também acho que a alta hierarquia é uma coisa, o clero secular local é outra, as ordens religiosas outras ainda. A Igreja Católica que eu consigo perceber hoje é uma organização complexa e não totalmente centralizada, apesar dos esforços. Acho que a chamada "opção pelos pobres" penetrou fundo em certas áreas da igreja brasileira, e a questão indígena é pensada como parte dela. Não tenho acompanhado a evolução da igreja de muito perto, mas um sinal muito positivo se deu recentemente na diocese do Rio Negro (AM), onde o novo bispo apresenta perfil progressista.
- A sra. vive em Chicago, terra do presidente Obama. Como avalia (e como avalia a percepção dos americanos sobre) este primeiro ano de seu governo? O que pensa sobre ele ter ganho o Nobel da Paz?
Aposentei-me em julho da Universidade de Chicago e, embora continue participando de algumas atividades lá, mudei-me de volta para São Paulo. Das últimas vezes que estive em Chicago, ficou claro que há, em vários setores muito diferentes entre si, decepção com o governo Obama. Mas Obama, dada a grande esperança que foi depositada nele e as condições políticas dos EUA, não podia deixar de decepcionar os setores mais progressistas. Tentar aprovar no Congresso uma reforma do sistema de saúde e fazer face à situação cada vez pior no Afeganistão e no Paquistão -só para citar apenas dois dos seus maiores problemas- exigem mais do que jogo de cintura e deixam em segundo plano outras promessas de quando era candidato. Acho, como tantos outros, que o Nobel da Paz outorgado a Obama teve vários motivos e significados. Entendo-o como um mandato e um encorajamento para que cumpra o que o mundo espera dele: que se chegue a uma paz entre israelenses e palestinos com a criação de um Estado palestino; que haja uma diplomacia eficaz para resolver as tensões dos EUA com o Irã e a Coreia do Norte; que se encontre uma saída para a guerra no Afeganistão; que se progrida no desarmamento nuclear mundial; que se feche de uma vez Guantánamo... Suas recentes manifestações a favor do desarmamento nuclear e as aberturas de diálogos diplomáticos são pouca coisa, é certo, diante de tão grande expectativa. O Nobel da Paz, que surpreendeu a todos, inclusive ao outorgado, é portanto ao mesmo tempo um desabafo anti-Bush e um voto de confiança e empurrão para que Obama entregue o que dele se espera.
- Por que seu livro se chama "Cultura com Aspas"?
Este livro é um conjunto de artigos. Os mais antigos já haviam sido reunidos em livro publicado nos anos 1980 pela editora Brasiliense e hoje esgotado, intitulado "Antropologia do Brasil", que a ed. Cosac Naify achou que se deviam republicar. A esses se acrescentaram vários outros artigos escritos nos últimos vinte e poucos anos. É, portanto, uma coletânea organizada por temas. O último artigo, muito mais longo que os outros e de formato sui generis, é que dá o título ao livro. O formato, sem notas de rodapé e referências detalhadas, provém de uma encomenda para uma coleção de panfletos organizada pelo antropólogo Marshall Sahlins. Embora deva sair nos EUA e na França ainda neste ano, por várias circunstâncias, acabou saindo primeiro no Brasil e é, portanto, inédito. Nesse capítulo, faço um balanço ao mesmo tempo antropológico e político de um processo que venho acompanhando há muito tempo, relativo às ciências tradicionais e seu tratamento pelos organismos sobretudo internacionais. De certa forma, nesse panfleto tento refletir antropologicamente sobre militância política. A questão dos direitos intelectuais associados aos conhecimentos tradicionais ilumina particularmente bem uma discussão que eu já vinha tratando de outras formas. Isto é, qual a diferença entre cultura na sua acepção antropológica e da "cultura" como autodescrição de grupos sociais que a invocam. As aspas apontam para o fato que "cultura" é reflexiva, refere-se a si mesma. Na medida em que retoma e prolonga muitos dos temas dos artigos anteriores, achei que cabia a esse último ensaio dar o título ao livro.
- O seu primeiro artigo publicado, que também abre o novo livro, foi "Lógica do Mito e da Ação - O Movimento Messiânico Canela de 1963", publicado na revista "L'Homme", fundada por Lévi-Strauss. Que importância ele teve em seu desenvolvimento profissional?
Escrevi esse artigo em Campinas, logo após entrar na Universidade Estadual de Campinas (SP). A ideia central era de que o mito podia, em certas circunstâncias, informar a ação humana. Os índios canelas do Maranhão haviam aderido em 1963 a um movimento messiânico que lhes prometia a supremacia sobre aqueles que os oprimiam. Mostrei em detalhe que esse movimento era a inversão estrutural de seu mito de origem do homem branco. Repare: não se tratava de dizer com simplismo que o mito era uma forma que moldava a história -forma no sentido de uma forma de cozinha ou de escultura-, e sim de que uma transformação estrutural desse mito era o roteiro para um movimento social. Para usar uma metáfora culinária um pouco capenga, mas à qual não resisto, é como se o movimento messiânico fosse uma "tarte" Tatin assada na forma de uma "tarte" de frutas. Portanto, a análise estrutural poderia fornecer uma chave de compreensão para certos fenômenos históricos. E, além disso, estava ali uma prova de que, como Lévi-Strauss sustentava, uma estrutura mítica é um conjunto de transformações. Lévi-Strauss gostou e fez publicar o artigo em primeira posição no número da revista. Quanto à importância para o que seguiu, é difícil avaliar. De certo modo, esse artigo me fez abordar estruturalmente material histórico, coisa que continuei fazendo.
- A sra. se refere a sua formação em matemática como um dos motivos para ter se sentido atraída pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Nessa afinidade de Lévi-Strauss com a matemática de ponta do século 20, não teríamos um dos motivos para a proverbial fama de "difícil" e "hermética" da obra do antropólogo francês?
Diga-se logo de saída que o uso que Lévi-Strauss explicitamente faz da matemática é metafórico. Mas havia uma afinidade muito real entre a forma de pensar estruturalista e a matemática que na época predominava na França, a do grupo que se autointitulou Bourbaki. Mauro Almeida publicou, na década de 1990, um artigo detalhado sobre a inspiração matemática e cibernética de Lévi-Strauss. Inspiração não quer dizer adoção ao pé da letra: Lévi-Strauss, que sempre foi um ávido leitor de revistas de divulgação científica, soube moldar as ideias da época à sua própria forma de pensar. Isso posto, a matemática é um tigre de papel, e as ciências humanas têm se fechado demasiadamente em si mesmas. Está fazendo falta entender o espírito que predomina em outras ciências, dialogar com elas.
- Como a sra. avalia o cenário atual e as perspectivas que se abrem para a antropologia?
Não há, nem nunca houve, uma só antropologia. As grandes correntes continuam, em larga medida, nacionais: inglesa, francesa, americana... E dentro e fora desses limites linguísticos e territoriais, muitas seitas e dissidências. A antropologia que se faz no Brasil tem tido reconhecimento internacional crescente, apesar de, como dizia o grande Antônio Vieira, a língua portuguesa ser o túmulo do espírito. Além disso, a antropologia tem se declarado em crise já há bastante tempo, por um período aliás bastante fecundo. Creio que a crise permanente é, portanto, condição constitutiva da fecundidade da disciplina. Finalmente, creio que os antropólogos têm o dever de descrever e documentar aquilo que facilmente passa despercebido. Sou cada vez mais a favor de uma boa etnografia. Teorias passam, a etnografia fica.
- A sra. brinca que é percebida como portuguesa entre os brasileiros, e como brasileira entre os portugueses. Essa experiência existencial entre "dois mundos", ainda que de mesma língua, é uma das motivações para o interesse pela antropologia, enquanto reflexão sobre a alteridade?
Já me sugeriram isso, mas é difícil saber. Na verdade, pertenço a bem mais do que esses dois mundos: de família judia húngara, batizada e criada católica, estou, como bem disse minha amiga Guita Debert [antropóloga], na pior das situações tanto para católicos quanto para judeus.
- Com a conquista da sede da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016, pode-se dizer que o Brasil está se tornando um "mito" no mapa geopolítico mundial? E esse possível prestígio "mítico" recairia em particular sobre a figura do presidente Lula, tanto lá fora como no Brasil?
Talvez, por que não?
(Folha de SP, 25/10)