JC e-mail 3803, de 13 de Julho de 2009.
15. Vozes indígenas
Pela primeira vez, IBGE fará o levantamento de todas as línguas faladas no país. Para cientistas sociais, pergunta sobre o idioma dos entrevistados no censo de 2010 reflete mudanças na sociedade brasileira e em sua identidade, cada vez menos "monoglota, católica, mestiça, heterossexual e cordial"
João Paulo Gondim e José Orenstein escrevem para a “Folha de SP”:
Em 2010, o Brasil saberá pela primeira vez na sua história o número oficial de línguas indígenas faladas em seu território. No Censo a ser realizado no ano que vem pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), um quesito específico vai levantar essa informação.
Estima-se que no país sejam faladas cerca de 220 línguas além do português. Dessas, cerca de 190 são indígenas e as demais vieram com imigrantes ao longo dos séculos 19 e 20.
Duas pesquisas piloto já foram feitas entre julho e novembro de 2008, e em setembro deste ano um Censo experimental ocorrerá em Rio Claro (SP) para testar, entre outras coisas, o novo quesito linguístico. Quando o entrevistado pelo Censo do próximo ano declarar-se indígena, serão feitas perguntas sobre sua língua.
É um passo importante para acompanhar o processo de afirmação da diversidade brasileira, na avaliação do antropólogo Otávio Velho, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Trata-se de aceitar cada vez mais o Brasil como um país plural formado por muitos grupos que possuem sua própria identidade; é um país onde a interpluralidade predomina."
A última vez em que foram produzidos dados oficiais sobre os idiomas no país foi em 1950. O objetivo daquela pesquisa era ter um controle sobre os imigrantes que viviam no Brasil, em razão da Segunda Guerra Mundial (1939-45).
Na época, não se falava em pluralismo ou multiculturalismo, tampouco se valorizavam línguas diferentes do português. Pensava-se num país monoglota, católico, mestiço, heterossexual e cordial. Agora, a situação é diferente.
Segundo o professor de história na UFRJ Manolo Florentino, a redemocratização pós-ditadura (1964-85) e o novo arcabouço político-jurídico implantado com a Constituição de 1988 criaram "instrumentos que oferecem vantagens efetivas àqueles que se autodefinem como indígenas: o acesso à terra, por exemplo".
Um dispositivo constitucional, porém, "não é nada se você não tem uma luta social para implementá-lo", argumenta o professor de filosofia na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e colunista da Folha Marcos Nobre.
Os conflitos recentes na demarcação das terras de Raposa/Serra do Sol, em Roraima, são exemplos de que os índios, com suas terras, costumes e cultura, "ainda são vistos como um risco à integridade da nação por muita gente".
O processo de autoafirmação indígena se segue a movimentos de afirmação racial, ao crescimento no número e na visibilidade de evangélicos e à organização dos homossexuais na luta por seus direitos. Nesse período, os indígenas foram ganhando espaço e se fizeram ouvir em suas reivindicações. "Seria muito estranho imaginar um Brasil imóvel e hermético, sobretudo num mundo globalizado", diz Florentino.
Para Marcos Nobre, trata-se de um processo de democratização geral da sociedade. "Há uma aliança de movimentos sociais distintos, mas com objetivos muito parecidos. Da mesma forma que os homossexuais, as populações indígenas querem ter reconhecida como digna sua forma de vida." Finalmente "há um reconhecimento por parte do Estado da diversidade linguística e cultural, mas que é fruto de uma conquista, de pelo menos 20 anos de lutas", analisa a linguista Bruna Franchetto, do Museu Nacional da UFRJ.
O levantamento dos idiomas pelo IBGE foi sugestão do Grupo de Trabalho sobre Diversidade Linguística, liderado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Após reuniões em 2006 e 2007, o grupo de trabalho propôs uma série de ações para a valorização das línguas no Brasil. Com a realização do inventário nacional, espera-se transformar os idiomas em patrimônio imaterial.
"Com a perda da diversidade linguística, perde-se a diversidade cultural e, consequentemente, perde-se muito da criatividade humana", afirma o linguista da UnB (Universidade de Brasília) Aryon Rodrigues, que é um dos pioneiros da pesquisa de línguas indígenas no Brasil e participou do grupo de trabalho do Iphan.
Outras fontes
Linguistas e missionários vêm mapeando a situação das línguas no Brasil, no vácuo das informações oficiais sobre o assunto. Além da lista elaborada pelo linguista Aryon Rodrigues, há duas outras fontes para o quadro geral linguístico do país.
Em fevereiro deste ano, a Unesco lançou um atlas de línguas ameaçadas de extinção em todo o mundo. Só no Brasil foram contabilizados 190 idiomas, com graus variados de risco de desaparecimento. Os dados foram reunidos a partir de uma compilação de pesquisas anteriores feitas por diversos linguistas, e que por isso muitas vezes são irregulares.
Bruna Franchetto e Denny Moore, linguista do Museu Paraense Emilio Goeldi, lideraram a compilação no Brasil, que classificou 45 línguas como em risco crítico de extinção. Também neste ano, em junho, foi lançada a pesquisa Ethnologue, feita pelo SIL (Summer Institute of Linguistics) -uma organização cristã que mapeia línguas pelo mundo visando à tradução da Bíblia. O Brasil é um dos principais focos de atuação dos missionários, que, em muitos casos, são também linguistas.
Muitos acadêmicos, no entanto, criticam os métodos do SIL por interferirem diretamente na cultura original dos índios.
(Colaboraram Flávia Martin, Luiza Bandeira e Vitor Moreno)
(Folha de SP, 12/7)