Schrago (UFRJ), Chambers e a recepção do darwinismo: algumas notas históricas explicativas

quarta-feira, julho 29, 2009

Em itálico eu entremeio algumas notas históricas explicativas para o artigo de Carlos Guerra Schrago sobre a influência do livro Vestígios da criação na aceitação do darwinismo. Ao contrário do afirmado por Schrago, o livro de Chambers facilitou a aceitação da evolução, mas não da teoria da seleção natural (rejeitada até pelos membros do círculo íntimo de Darwin: Lyell, Hooker e Huxley).

Enézio E. de Almeida Filho
Doutorando em História da Ciência – PUC-SP

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Vestígios da criação: Robert Chambers e a recepção ao darwinismo

Livro de 1844 sobre transmutação dos seres vivos facilitou aceitação da teoria da seleção natural

Charles Darwin não foi o primeiro a lançar a ideia do evolucionismo. Outros autores escreveram sobre a transmutação dos seres vivos antes que sua teoria fosse anunciada, mas isso é pouco divulgado.

[1] Por que esta verdade de que Darwin ‘não foi o primeiro a lançar a ideia do evolucionismo’ não é muito divulgada? Quem poderia divulgar? Pode fazê-lo sem ‘inquisição sem fogueiras’? Sem danos à sua carreira acadêmica?

Em 1844, mais de uma década antes do lançamento do célebre A origem das espécies, foi publicado um livro anônimo e sem rigor científico que tratava do tema da mudança no mundo orgânico. A obra, que muitos anos depois teve seu autor revelado, fez muito sucesso, preparando o terreno para que a teoria da seleção natural pudesse ser aceita entre os não especialistas e mesmo no meio acadêmico.

[2] Se o Vestígios da Criação, mesmo sendo ‘sem rigor científico’, foi o livro que ‘preparou o terreno’ para a aceitação da teoria da seleção natural por leigos e acadêmicos, por que Darwin (que reconheceu isso) criticou tão severamente seu conteúdo ‘preparador de terreno’? Isso não é o mesmo que dar um tiro nos próprios pés: atacar o ‘arauto’ da chegada de novas velhas ideias?

Em 24 de novembro de 1859, chegava às livrarias a primeira edição de um dos livros mais importantes da história da ciência: A origem das espécies, do naturalista Charles Darwin (1809-1882).

[3] A maioria dos biólogos nunca leu A origem das espécies. Ernst Mayr disse que o livro de Darwin era um livro confuso e não ‘entregava’ o que o título se propunha explicar: a origem das espécies.

Essa obra influenciou profundamente o destino da nova ciência da biologia, palavra criada não muito antes dessa data para tentar unificar os estudos de história natural e de fisiologia dos seres vivos.

[4] O livro de Darwin, apesar do ‘furore’ causado nos anos 1859-1872, foi criticado por cientistas. Especialmente a seleção natural, um dos mecanismos evolutivos proposto por Darwin: Thomas Huxley, Joseph Hooker, Charles Lyell e St. George Jackson Mivart duvidavam da capacidade criativa da seleção natural. Darwin entrou em eclipse: nas celebrações dos 50 anos do A origem das espécies em Cambridge (1909), a seleção natural foi criticada.

Ao contrário do afirmado, A origem das espécies teve pouco, ou nenhum efeito sobre as ciências biológicas do seu tempo porque elas já eram mecanicistas e experimentais. As investigações naturalistas de Darwin não contribuíram significantemente para a biologia experimental daquela época.

Somente com advento do neodarwinismo é que a teoria geral da evolução de Darwin ‘influencia’ a nova ciência da biologia.

Em 1878, quase nenhum cientista aceitava a seleção natural como sendo “o” mecanismo evolutivo. Nos 100 anos, desta vez em Chicago (1959), a seleção natural também foi criticada. Nos 200 anos de Darwin e 150 anos deste seu livro, ocorre um fato inusitado mundialmente: os cientistas ‘louvam’ a seleção natural como sendo “o” mecanismo evolutivo par excellence, mesmo sabendo da existência da elaboração de uma nova teoria geral da evolução: a Síntese Evolutiva Ampliada que relegará a seleção natural a um segundo plano.


O livro, mais ainda, colocou seu autor entre os grandes pensadores da humanidade, pois as ideias expressas nele ecoariam em ramos tão diversos quanto psicologia e agronomia.

[5] Se Darwin foi ‘o homem que teve a maior ideia que toda a humanidade já teve’ (Dennett) e esta sua ideia não é corroborada pelas evidências no contexto de justificação teórica, o que dizer então da sua influência em outras áreas científicas se Darwin não fecha as contas na biologia evolutiva? A psicologia evolutiva é uma área duramente criticada até por cientistas darwinistas.Darwin, o grande pensador, se inspirou em Malthus, cujas teses apocalípticas nunca foram corroboradas na história da humanidade.


O escocês Robert Chambers foi o autor de Vestígios da história natural da criação,livro lançado em 1844 que antecipou a ideia de transmutação das espécies.

Em uma Inglaterra vitoriana imersa em tradições oriundas da tradição judaico-cristã e concepções filosóficas ainda bastante associadas ao pensamento clássico (da Antiguidade) e escolástico (da época medieval), o darwinismo apresentaria uma nova visão do mundo natural e da posição do ser humano neste. Romperia definitivamente com as ideias de filósofos gregos, como o idealismo de Platão e a doutrina finalista de Aristóteles, abalando os fundamentos do judaísmo, do cristianismo e do islamismo.

[6] O darwinismo não foi uma súbita (“revolucionária”) interrupção da crença confiante da sociedade vitoriana na cosmovisão teológica tradicional. Antes, foi apenas mais um passo, se bem que maior, para um naturalismo científico popularmente compreensível, inclusive a ideia de nossa origem de primatas, que já estava no ar já em 1850. A Inglaterra vitoriana já não era ‘ortodoxa’ naquela cosmovisão. Além disso, a Inglaterra nos anos 1850 já tinha sido exposta a dois séculos de Iluminismo, inclusive com seus autores como Thomas Hobbes, John Locke, os deístas David Hume e Adam Smith, e os utilitaristas George Combe e J.S. Mill.

Apesar do enorme impacto na história intelectual dos humanos, o evolucionismo – ou, de forma mais ampla, o transmutacionismo – não é uma novidade darwiniana. Diversos autores, inclusive o avô de Darwin, Erasmus (1731-1802), abordaram a ideia de transformação ou desenvolvimento dos seres vivos.

[7] Que impacto intelectual é este se 2.500 antes de Darwin, os chineses já discutiam um tipo de seleção natural responsável pelo transmutacionismo das espécies? Que impacto intelectual é este se no século XXI Darwin é chamado para corroborar sua teoria e não consegue?

Se ideias têm consequências, é bom considerar cum granum salis que Darwin influenciou a medicina apenas com a eugenia e também a Hitler com a ‘solução final’, uma vez que os judeus seriam ‘raça inferior’. Darwin preconizou o ‘extermínio’ de raças inferiores no seu livro menos lido e menos pesquisado: The Descent of Man.


Entretanto, pouco é divulgado sobre a literatura transmutacionista existente na própria Grã-Bretanha antes da publicação de A origem. Afinal, os livros didáticos simplificaram a história da biologia evolutiva na oposição entre Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) e Darwin, como se apenas esses dois pensadores tivessem relevância na descoberta da evolução das espécies. Com isso, na caricatura ‘Lamarck, que errou/ Darwin, que acertou’, mesmo a importância de Alfred Russel Wallace (1823-1913), codescobridor da teoria da seleção natural, fica reduzida (ver ‘Um nome fundamental’ e ‘A marcha da natureza e seus descaminhos’, na edição deste mês da CH).

[8] Os livros didáticos simplificam a história da biologia evolutiva na oposição entre Lamarck e Darwin porque esta polarização tem interesses outros em mostrar um Darwin ‘triunfante’ simbolizando a ‘razão’ e Lamarck ‘derrotado’ simbolizando a ‘irracionalidade’. E tudo isso, pasme, com o aval explícito do MEC/SEMTEC/PNLEM.

Darwin foi muito mais lamarckista do que Lamarck. Vide a 6ª. edição de A origem das espécies, onde vemos Darwin forçado a responder as críticas de Mivart quanto ao papel da seleção natural na origem das espécies. Quanto a Alfred Russel Wallace, este mesmo interesse tem outros velados: é que o trabalho original de Wallace sobre a seleção natural é muito superior ao de Darwin, mas isso também não é muito divulgado.

Muito antes de Darwin partir no Beagle em 1831, Patrick Matthew elaborou a sua ‘lei natural da seleção’. O que dizer então de Edward Blyth que em 1839 introduziu na literatura científica o conceito de seleção natural hoje conhecido como ‘seleção estabilizadora’?

Dos livros britânicos do século 19 que discutiram a ideia de mudança no mundo orgânico antes de Darwin, o mais importante é, sem dúvida, Vestígios da história natural da criação, do editor e pensador escocês Robert Chambers (1802-1871). Sua importância é tanta que muitos historiadores, e o próprio Darwin, sugeriram que a aceitação de A origem das espécies não teria sido tão imediata se Chambers não tivesse introduzido a ideia da transmutação ao público, leigo e especializado, em seu livro, publicado anonimamente em 1844. Nesse mesmo ano, vale lembrar, Darwin apresentou a seu amigo e confidente, o botânico Joseph Hooker (1814-1911), um manuscrito de 1839 que expunha os princípios de sua teoria.

[9] A aceitação do transmutacionismo pela comunidade científica [que Darwin esperava, mas nunca teve o apoio para a seleção natural - a sua teoria] e pelos leigos da Inglaterra [a quem Darwin pouco se importava com o que pensavam a respeito do assunto] parece ter recebido outras influências anteriores ao Vestígios da Criação.

Quanto ao manuscrito expondo os princípios da teoria da evolução de 1839, convém esclarecer que Hooker mandou Darwin se aprofundar mais na questão antes de chegar precipitadamente a conclusões. Algo como: faça o dever de casa!


A importância de Chambers

Mas quem foi Chambers e por que seu livro é tão importante? Ele nasceu em Peebles, na Escócia, em 1802. Ele e o irmão William foram educados em escolas locais e, por volta de 1832, já em Edimburgo, a atual capital escocesa, fundaram a editora W. & R. Publishers, que obteve considerável sucesso, dando a eles influência nos círculos políticos e científicos. O caçula Robert, um leitor compulsivo, devorava avidamente tratados de ciências naturais, especialmente de geologia, o que o motivou a fazer expedições geológicas à Escandinávia e ao Canadá.

Em 1844, Robert Chambers fez os arranjos necessários para a publicação anônima de Vestígios da história natural da criação. No livro, ele propõe que a origem e evolução do universo e dos seres vivos, inclusive dos humanos, ocorreram por causas naturais, mas não especifica o mecanismo exato dessas mudanças.

Na verdade, o texto não tinha rigor científico, o que lhe rendeu comentários negativos. Chambers, porém, usou uma linguagem acessível ao leitor não especialista para falar da formação dos corpos espaciais, da constituição do planeta Terra, da formação das primeiras rochas, da origem da vida, da origem dos vertebrados, da evolução humana e mesmo da formação das sociedades humanas.


Carlos Guerra Schrago
Departamento de Genética,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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PDF da versão integral do artigo Ciência Hoje aqui [1.8MB].