JC e-mail 3803, de 13 de Julho de 2009.
16. O patrimônio da diferença, artigo de Manuela Carneiro da Cunha
Para antropóloga, história do país revela sucessivas tentativas de negação da existência física e cultural dos índios
Manuela Carneiro da Cunha é antropóloga e professora da Universidade de Chicago. Artigo publicado na “Folha de SP”:
Há um grande divisor de águas na maneira de se perceberem os índios. Até muito recentemente -e ainda existem resquícios felizmente cada vez mais isolados dessa visão- entendia-se que os índios estavam aí como resquício do passado e destinados a desaparecer física e culturalmente.
A partir sobretudo do final da década de 1980, percebeu-se que os índios estavam aqui para ficar, e que faziam parte do futuro do Brasil.
As variações sobre esses temas são muitas: na colônia, procurava-se evangelizar os índios, escravizá-los ou pelo menos transformá-los em trabalhadores braçais, em suma incorporá-los por baixo à sociedade colonial. Morreram nos aldeamentos aos milhares, em poucos anos, de causas então desconhecidas.
Uma explicação teórica a essa mortandade chegou no final do século 18: biologicamente, afirmou-se com De Pauw, o Novo Mundo era um local de senescência precoce, em que não havia grandes mamíferos como na África e onde a civilização não podia prosperar porque a humanidade era acometida de prematura velhice antes de poder atingir a plena maturidade.
O desaparecimento dos índios se tornava assim, pela primeira vez, um destino biológico. Quase um século mais tarde, o darwinismo social explicava pela seleção natural o declínio populacional dos índios sem aparentemente atentar para as guerras movidas nesse período aos índios em todas as Américas para controle das terras.
Outra vertente de programas de desaparecimento biológico dos índios eram as políticas de miscigenação, das quais a mais famosa foi a do marquês de Pombal em 1755, mas que José Bonifácio endossou na tentativa de criar uma nação homogênea correspondendo ao novo Estado do Brasil.
O século 19 agregou a noção de civilização à de catequização e em larga parte a substituiu. O "progresso" -para o qual os índios estavam "atrasados"- sucedeu à "civilização", da República até o fim da Segunda Guerra Mundial. Depois do "progresso", veio o "desenvolvimento". Em muitos sentidos, catequização, civilização, progresso e desenvolvimento são avatares uns dos outros na medida em que preconizam mudança cultural. Mas há diferenças significativas.
Etapas da cobiça
O historiador José Oscar Beozzo distingue com razão dois grandes períodos da política indigenista no Brasil: até cerca de 1850, os índios eram sobretudo cobiçados como mão de obra; a partir de 1850, cobiçavam-se sobretudo as terras deles.
"Desinfestar os sertões" do país dos seus índios passou a ser entendido como condição de progresso. Aldeá-los fora de seus territórios tradicionais era um modo de dar acesso às terras deles. O mapa das terras indígenas no Brasil de hoje é o mapa das terras que até recentemente não interessavam a ninguém.
Foi com a cobiça de suas terras que os índios passaram a ser considerados como entraves, empecilhos ao desenvolvimento. Agora um programa de assimilação passava a ser estratégico para tentar descaracterizar legalmente os índios enquanto sujeitos de direitos territoriais, reconhecidos pelo menos desde 1680 e inscritos em todas as Constituições brasileiras desde a de 1934.
As tentativas de "emancipação" dos índios das décadas de 1970 e 1980 repetiram estratégias do último quartel do século 19 que dissolviam aldeamentos a pretexto de que os índios estivessem misturados com o resto da população. "Desenvolvimento" foi o mantra do pós-guerra e em nome dele fez-se por exemplo a Revolução Verde [que disseminou novas técnicas agrícolas].
Outra ideia mestra, provocada pelos horrores do racismo nazista, foi a do direito à igualdade, inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, de 1948, e também na Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, essa respondendo ao racismo do apartheid. O direito à igualdade, essencial sem dúvida, de certa forma obnubilou outro direito fundamental, o direito à diferença.
Sartre já dizia que a forma de racismo liberal era aceitar a igualdade dos homens desde que despidos de qualquer especificidade cultural.
A grande inovação do final dos anos 1980 e que ganhou corpo nos anos 90 foi o reconhecimento desse direito à diferença. A grande introdutora desse direito no âmbito internacional foi a Convenção 169 da OIT, adotada em 1989, que revisava em grande parte a convenção de cunho assimilacionista de 1957.
Uniformidade nacional
No domínio da diferença, a questão da língua sempre foi sensível: é provavelmente o traço mais reconhecível de todo grupo étnico. Há pouco tempo ainda se proibia falar ou publicar em catalão na Espanha, com a consequência -curiosa, aliás- de que há toda uma geração catalã que não sabe escrever sua língua porque apenas a falava em casa, clandestinamente.
A ideia de que cada país deva falar uma única língua faz parte de uma concepção de Estado do século 18, assente em uma única comunidade homogênea em todos os seus aspectos: religiosos, linguísticos, culturais em geral. Ora, países como esses são a exceção, e não a regra.
Mas, durante pelo menos dois séculos, tentou-se no Ocidente dar realidade a essa utopia. No Brasil não foi diferente. Em 1755, o marquês de Pombal exigiu o uso do português e proibiu o do nheengatu, um tupi gramaticalizado pelos jesuítas e introduzido pelos missionários na Amazônia.
Nos últimos 20 anos, a situação mudou consideravelmente: na Constituição de 1988 se assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas no ensino fundamental e agora abundam cartilhas em línguas indígenas. Há alguns anos, o município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, reconheceu quatro línguas oficiais, das quais três são indígenas. E, agora, o IBGE anuncia que incluirá as línguas indígenas nas perguntas do próximo Censo.
Todas essas iniciativas marcam uma distância clara da ideologia assimilacionista de algumas décadas atrás. A diferença linguística -e o Brasil tem pelo menos 190 línguas indígenas- passou a ser vista como patrimônio. Dessas 190 línguas e dialetos, a grande maioria é falada por menos de 400 pessoas. Ora, a estrutura e a gramática das línguas encerram toda uma visão de mundo: Benveniste mostrou, por exemplo, que as categorias da filosofia de Aristóteles eram as próprias categorias gramaticais do grego. Calculem os riscos que corremos.
(Folha de SP, 12/7)