Evolução e religião
Colunista recorre à genômica comparada para apontar limitações e fragilidades do desenho inteligente
A resistência de alguns grupos religiosos à evolução é um problema que me deixa simultaneamente perplexo e entristecido. Como racionalista de carteirinha e cientista militante, tenho dificuldade em entender essa situação. Como pode um indivíduo pensante desprezar evidências empíricas gritantes e concretas para adotar em seu lugar um pensamento anticientífico, com base apenas em revelações e escrituras milenares de origem obscura que alegam ser de autoria divina?
O que considero necessário não é a ciência da evolução se modificar com o objetivo de se tornar palatável para algumas crenças religiosas. O importante é que as religiões adaptem suas doutrinas para lidar com a realidade da evolução, assim como tiveram de se adaptar à teoria heliocêntrica do Sistema Solar 500 anos atrás.
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Alegoria do universo heliocêntrico de 1708 por Andreas Cellarius. Há meio milênio, a Igreja Católica precisou se adaptar para adequar sua doutrina ao fato de a Terra não ser o centro do universo. É hora de todas as religiões se adaptarem para aceitar a evolução por seleção natural.
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É absolutamente incontestável o fato da evolução. Não se trata de uma simples teoria da evolução. Dados paleontológicos, geológicos e fisiológicos já forneceram ampla evidência da origem única da vida na Terra e de sua evolução progressiva para formar as milhões de espécies de animais e plantas que aqui habitam. Mas a genômica comparada foi a cereja no topo do sorvete, o elemento que nos deu a prova final da verdade incontestável da evolução.
Evolução comparada
Os dados gerados pelo Projeto Genoma em humanos e em outros organismos mostraram que a sequência de DNA do nosso genoma é 99% idêntica à do chimpanzé (!), além de ter em comum 65% com o camundongo (!!), 47% com a mosca de frutas Drosophila melanogaster (!!!), 20% com uma pequena mostarda chamada Arabidopsis thaliana (!!!!) e até 15% igual à da levedura Saccharomyces cerevisiae (!!!!!), que produz para nós o pão e a cerveja.
Esse alto grau de compartilhamento genômico mostra que toda a biosfera é, como nós, herdeira de um genoma primordial que deu origem ao primeiro ser vivo na Terra, a partir do qual todos os outros derivaram. Não somos o produto final e perfeito da criação, com direito divino de destruir nossos primos animais e plantas a nosso bel-prazer. Somos parte de uma rede de vida e, se esfacelarmos essa rede, destruiremos a nós próprios. A consciência do nosso parentesco genômico com os outros organismos terrestres, da origem única e da herança do DNA que une todos os seres vivos deve nos motivar para tratar o nosso planeta com renovado respeito.
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O painel superior mostra uma imagem de microscopia Nomarski de leveduras em cultura. O painel inferior mostra os experimentos de engenharia genética publicados por nós (clique na imagem para baixar o artigo). No lado esquerdo está mostrada uma colônia normal de Saccharomyces cerevisiae. Após remoção do gene Rho, as leveduras não mais se dividem e formam colônias. No painel da direita vemos como a transferência do gene SmRho de Schistosoma mansoni é capaz de restaurar a reprodução e formação de colônia à leveduras “doentes” (montagem do autor)
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Ademais, a similaridade genômica vai além do plano estrutural do DNA e se estende ao nível funcional. Por exemplo, há alguns anos um aluno do meu laboratório de pesquisa (Túlio M. Santos) desenvolveu sua tese de doutorado em torno de um gene chamado SmRho isolado do verme Schistosoma mansoni (o parasita causador da esquistossomose, doença que aflige centenas de milhões de pessoas em todo o Terceiro Mundo).
Para verificar se SmRho era funcionalmente o mesmo gene homólogo já anteriormente bem conhecido no Saccharomyces cerevisiae, usamos primeiramente técnicas de engenharia genética para deletá-los das leveduras – com isso, elas se tornaram incapazes de se dividir e de formar colônias (ver figura).
Então, transferimos para as leveduras doentes o gene SmRho do parasito. Eureca! As leveduras voltaram a crescer e a formar colônias quase normais. Em outras palavras, o gene Rho do verme funcionava perfeitamente na levedura, da qual estava separado evolucionariamente há centenas de milhões de anos.
Darwin e a religião
Como todos sabem, em 2009 comemoramos 200 anos do nascimento de Charles Darwin e 150 anos da publicação da Origem das espécies. De fato, nos últimos meses temos sido expostos pela imprensa a uma miríade de artigos sobre o grande cientista, a vasta maioria deles infelizmente contendo afirmações bombásticas e errôneas, escritas por pessoas que nunca leram Darwin e não entendem nada de genética evolucionária. Um dos pecados sensacionalistas mais comuns é afirmar que “Darwin matou Deus”. Besteira pura!
Para entendermos a relação de Darwin e da evolução com a religião, vamos fazer um desvio pela física, com uma história contada pelo astrofísico americano Neil de Grasse Tyson, do Museu Americano de História Natural de Nova Iorque em seu excelente artigo “O perímetro da ignorância” (The perimeter of ignorance), publicado em 2005 na revista Natural History.
A lei da gravidade, desenvolvida pelo genial Isaac Newton (1643-1727), permite que seja calculada a força de atração entre dois corpos celestes. Assim, é possível traçar as órbitas dos planetas em torno do Sol. Entretanto, os planetas também exercem forças de atração entre si. Até Plutão, que desde 2006 nem é mais considerado um planeta, exerce gravidade sobre a Terra. Isso cria uma rede de atrações mútuas que modifica as órbitas dos planetas e é extremamente difícil de computar.
A lei da gravidade, desenvolvida pelo genial Isaac Newton (1643-1727), permite que seja calculada a força de atração entre dois corpos celestes. Assim, é possível traçar as órbitas dos planetas em torno do Sol. Entretanto, os planetas também exercem forças de atração entre si. Até Plutão, que desde 2006 nem é mais considerado um planeta, exerce gravidade sobre a Terra. Isso cria uma rede de atrações mútuas que modifica as órbitas dos planetas e é extremamente difícil de computar.
Pois bem: quando Newton tentou lidar com tudo isso em suas equações, chegou à conclusão de que o Sistema Solar era muito instável e que os planetas deveriam ter se precipitado sobre o Sol (o que obviamente não tinha acontecido). Ele então escreveu em 1687 nos Principia mathematica, sua obra mais importante: “Não é possível conceber que meras causas mecânicas possam gerar tantos movimentos regulares... Este maravilhoso sistema... só poderia operar sob o domínio de um Ser poderoso e inteligente”
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Pierre-Simon de Laplace, em retrato pintado Madame Feytaud, parte da coleção da Academia de Ciências, Paris, França. Laplace expandiu o perímetro de ignorância que tolhia Newton, demonstrando que equações que continham as forças gravitacionais de todos os planetas demonstravam um sistema solar estável.
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As coisas ficaram assim por mais de um século até que, em 1825, Pierre-Simon de Laplace, na França, conseguir provar matematicamente a estabilidade do Sistema Solar em seu tratado em cinco volumes Mecânica celeste, que ofertou a Napoleão Bonaparte. Segundo a lenda, o imperador leu a obra (naquela época os líderes de países eram aparentemente cientificamente alfabetizados – bons tempos...) e perguntou a Laplace por que não havia nenhuma menção a Deus. A resposta de Laplace foi: “eu não tinha necessidade de tal hipótese”!
O mesmo se passou com Darwin. Em momento algum ele propôs que Deus não existia. Ele simplesmente não tinha necessidade daquela hipótese para explicar a origem dos seres vivos e a grande variedade de espécies no mundo natural. De fato, ele escreveu na Origem das espécies: “Existe um desenho aparente nos organismos vivos. Mas a seleção natural é suficiente para explicar isto. Não é necessária a hipótese da existência de um desenhista” (a propósito, o uso da palavra “desenhista” por Darwin remete-nos ao argumento de William Paley, que será apresentado mais à frente nesta coluna).
Evolução e religião
Assim, a evolução por seleção natural é perfeitamente compatível com a crença na existência de Deus.
Os evolucionistas estão preocupados em entender a geração da diversidade dos seres vivos na Terra e não têm qualquer desejo – ou tempo – para se intrometer em problemas espirituais. Parafraseando Galileu Galilei, podemos dizer que a preocupação de quem estuda a evolução é entender como as coisas andam na Terra e não entender como se ganha o céu...
Apenas algumas denominações protestantes fundamentalistas fazem uma interpretação literal estrita, criacionista, do livro do Gênesis na Bíblia que os leva a rejeitar em princípio a evolução biológica. Para eles a Terra (e todo o universo) tem menos de 10 mil anos (danem-se os dinossauros e toda a evidência fóssil) e Deus criou o homem diretamente!
No seu livro Os anais do velho testamento, publicado em 1650, o bispo inglês James Ussher calculou que Deus criou o universo na véspera do dia 23 de outubro de 4004 a.C. Até o final dos anos 1970 todas as Bíblias colocadas em quartos de hotel nos Estados Unidos pela Gideon Society continham essa estimativa, que também fez parte da arguição a que Clarence Darrow submeteu William Jennings Bryan no famoso julgamento de Scopes, no Tennessee, em 1926.
Esse julgamento foi importantíssimo na história do desenvolvimento do ensino de evolução em escolas públicas nos Estados Unidos. O excelente filme O vento será sua herança (1960), com Spencer Tracy, conta a estória do julgamento de forma ficcional.
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Imagem do filme O vento será sua herança, versão ficcionalizada do julgamento de Scopes, no Tennessee, em 1926. Na cena, Clarence Darrow (Spencer Tracy) argui William Jennings Bryan (Fredric March) sobre o cálculo feito pelo bispo inglês James Ussher de que Deus criou o universo na véspera de 23 de outubro de 4004 a.C. Esse julgamento foi importantíssimo na história do desenvolvimento do ensino de evolução em escolas públicas nos Estados Unidos.
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Desenho inteligente (?)
Em 1987 a Corte Suprema dos Estados Unidos decidiu que a necessidade do ensino do criacionismo ao lado da evolução nas escolas públicas era incompatível com a separação de Estado e Igreja. Assim, os fundamentalistas americanos tiveram de mudar a sua estratégia contra o ensino da evolução, tirando a ênfase do aspecto religioso e adotando uma argumentação “científica”: o chamado “desenho inteligente”.
Na verdade este argumento não tem nada de novo (nem científico), pois foi originalmente proposto pelo filósofo inglês William Paley (1743-1805). No seu livro Teologia natural, ele apresentou o seguinte argumento a favor da existência de Deus (tradução minha):
”[…] imagine que eu pise em uma pedra e que alguém me pergunte como ela foi parar naquele lugar; se eu responder que do meu ponto de vista ela sempre esteve naquele local, não seria possível demonstrar qualquer absurdo na minha resposta. Mas imaginem que eu encontre um relógio no chão e que me perguntem como ele foi parar lá. Eu não pensaria na mesma resposta. […] Deve ter havido, em algum tempo e lugar, um artífice ou artífices que fizeram o relógio [...], que entenderam seu uso e desenharam sua construção.”
A versão moderna do “desenho inteligente” argumenta que existem várias estruturas nos seres vivos que são irredutivelmente complexas, ou seja, compostas de elementos harmônicos e interativos que contribuem para o funcionamento do todo, de forma que a remoção de qualquer das partes faz com que ele cesse de funcionar.
Tais estruturas, eles argumentam, não poderiam evoluir naturalmente, pois a sua função só iria emergir quando o todo estivesse completo. Assim, como no caso do relógio de Paley, a existência desses órgãos implica na existência de um ser superior que os teria “desenhado”. Um dos exemplos favoritos é o do olho humano.
Não vou detalhar o conceito de exaptação, já mencionado nessa coluna anteriormente, ou argumentar que em princípio a evolução do olho humano é bem entendida, tendo seu início em agrupamento de células fotossensíveis que constituem olhos primitivos em organismos menos complexos.
Em vez disso, prefiro discutir um ponto ressaltado por Neil de Grasse Tyson, que é a enorme presunção, a incrível húbris de alguém afirmar que, “se eu não entendo como o olho humano foi formado pela evolução, isso quer dizer que ninguém mais, agora ou no futuro, será capaz de entender isto”.
A ciência não funciona dessa maneira. Sabemos que o nosso conhecimento científico atual é finito e circundado por um perímetro de ignorância. Quando, ao ponderar sobre um problema, esbarramos nesse perímetro, nós, cientistas, tentamos empurrá-lo, aumentá-lo, alargá-lo, e não simplesmente cruzar os braços e dizer que “eu não entendo aquilo, não sei como funciona, é complicado demais para qualquer humano entender, logo deve ser o produto de uma inteligência superior”.
Termino com um parágrafo de Tyson (minha tradução):
“A ciência é uma filosofia de descoberta. O desenho inteligente é uma filosofia de ignorância. Não é possível construir um programa de descoberta baseado na premissa que ninguém é inteligente o suficiente para encontrar a resposta a um problema. Tempos atrás, as pessoas apontavam o deus Netuno como a fonte das tempestades no mar. Hoje, sabemos quando e onde elas começam. Sabemos o que as alimenta. Sabemos o que pode mitigar seu poder destrutivo. E qualquer pessoa que já estudou o aquecimento global pode contar o que as faz se agravarem. As únicas pessoas que ainda chamam furacões de ’atos de Deus‘ são as que escrevem as apólices das companhias de seguro.”
Sergio Danilo [Junho] Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
08/10/2009