JC E-MAIL 3388 de 12 de Novembro de 2007
20. O retorno de Lamarck
Bióloga israelense diz que teoria da evolução precisa ser ampliada para incluir idéia da herança de caracteres adquiridos, mas que evolucionistas resistem à mudança
Rafael Garcia escreve para a “Folha de SP”:
Um conceito que durante mais de 60 anos foi espezinhado por professores de biologia —o lamarckismo— vai voltar a ser ensinado em escolas. A profecia é da bióloga israelense Eva Jablonka, da Universidade de Tel Aviv, uma das cientistas à frente do movimento que quer pôr um fim ao que ela considera um tabu.
A herança de características adquiridas durante a vida de um indivíduo —a transmissão de traços não-incorporados à seqüência de DNA— foi algo arduamente debatido desde que o naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) concebeu a idéia que levou seu nome. [NOTA DO BLOGGER: Rafael Garcia leia urgentemente o livro “A Teoria da Progressão dos Animais de Lamarck”, da Dra. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins (PUC-SP), São Paulo, Booklink, 2007 e veja: a idéia que levou o nome de Lamarck não foi pensada por ele — fazia parte do pensamento científico dominante da época].
À medida que a teoria da evolução de Darwin foi incorporando a genética, porém, nas primeiras décadas do século 20, o lamarckismo acabou sendo rejeitado pelos biólogos.
Agora, para desenterrar o conceito, Jablonka precisou de uma única palavra mágica: “epigenética”. Esse é o termo usado para se referir ao estudo dos padrões de “expressão” (ativação de genes). A idéia por trás de tudo é que dois organismos que têm um mesmo genoma podem manifestar características totalmente diferentes, se alguns genes não forem expressos em um deles.
Nada disso seria incompatível com a rejeição ao lamarckismo, mas nas duas últimas décadas começou a crescer o número de estudos relatando que padrões de expressão gênica podem ser induzidos por mudanças ambientais e depois passados de pais para filhos.
Se esse é um fenômeno comum em biologia —como defende Jablonka— uma teoria de evolução mais completa precisará se dar ao trabalho de acomodar Lamarck agora.
Em palestra na última terça-feira no 1º Workshop de Evolução Biológica, em Porto Alegre, a bióloga apresentou uma pequena amostra de maneiras como características adquiridas podem ser transmitidas —as vezes por muitas gerações.
As descobertas começaram na década de 1980 com relatos de casos esparsos, como plantas herdam padrões de metilação de DNA, um mecanismo de desativação de genes. Hoje a transmissão de características adquiridas vai além da epigenética e já é conhecida até em humanos, como no caso de mães que transferem suas preferências alimentares aos filhos por meio do leite materno.
Esse tipo de fenômeno, que atrai desde médicos até botânicos, só não conquistou ainda os biólogos evolutivos, diz Jablonka. Em entrevista à Folha, ela fala um pouco sobre sua visão de evolução, que, além da genética e da epigenética, precisaria incluir também cultura e, no caso dos humanos, língua:
— Os fenômenos que a sra. relatou em sua apresentação parecem ser relatos esparsos em sua maioria. Isso está sendo estudado de maneira sistemática?
Um livro-texto em epigenética foi lançado agora em 2007, e há outro sendo lançado em 2008. Eles lidam principalmente com medicina e desenvolvimento. Não abordam muito hereditariedade. Há pessoas em medicina muito interessadas nisso porque se existem doenças que podem ser induzidas pelo ambiente e transmitidas a descendentes, isso é algo importante para epidemiologia. Há muitos grupos trabalhando nisso, não apenas em epigenética do câncer, mas também em outras doenças complexas, como diabetes. Acredita-se que herança epigenética pode influenciá-la. Botânicos estão trabalhando mais para tentar entender o mecanismo de silenciar os genes. Eles estão bem conscientes de que esses mecanismos influenciam a evolução. Só que esse trabalho, em sua maioria, não está sendo feito por biólogos evolutivos e sim por biólogos moleculares. Você lê ótimos estudos, nos quais há apenas algumas linhas dizendo que aquilo é interessante para a evolução. Um estudo que não tive tempo de discutir mostra como a herança epigenética é importante em evolução de plantas. E em fungos também. Pesquisadores franceses dizem que pelo menos um terço do que se observa não se encaixa em genética mendeliana [clássica]. Um terço não é pouco. Em animais, há diversos estudos agora em drosófila, vermes e mesmo em mamíferos. Mas a maioria dos que trabalham nisso [heranças epigenéticas] não são biólogos evolutivos. Eles são o último bastião, resistem muito a isso.
— Por quê?
Porque isso é hereditariedade lamarckista. São variações induzidas pelo ambiente, que são específicas e são transmitidas. Esse não é o paradigma que tem dominado o campo. Se for necessário incluir nos modelos [teóricos] a possibilidade da variação induzida, fica muito difícil. Nesse caso, o ambiente deixa de ser apenas o ambiente selecionador e passa a ser também o ambiente que induz a variação hereditária. Isso requer que se repense um bocado em termos de modelagem de processos evolutivos. Acho que a resistência [dos biólogos evolutivos] a isso é compreensível enquanto eles não estejam convencidos de que esse é um fenômeno realmente importante. Essa tem sido a história da biologia evolutiva desde o começo do século 20. Quando a genética mendeliana apareceu, biólogos evolutivos levaram quase 30 anos para alcançá-la. E o mesmo acontece agora. A hereditariedade epigenética aparece, e pode levar mais dez anos para os biólogos evolutivos a alcançarem.
— Um dia, então, será necessário mudar as referências ao “erro” de Lamarck nos livros escolares?
Acho que sim, mas, de uma maneira que não prejudique. As pessoas terão de pensar sobre Lamarck não no primeiro estágio, mas no segundo. Terão de aprender Lamarck só depois de aprender Darwin. É muito fácil cometer erros ingênuos sobre o lamarckismo, como a história da girafa que se esforça para esticar seu pescoço [e acaba tendo uma prole com pescoço longo].
— Mas são só os exemplos que estão errados? Ele não teria formulado a hipótese errada para explicar as coisas?
O pensamento dele era muito simples. Ele falava de mudanças fisiológicas que ocorrem em decorrência do esforço que o organismo faz para comer, ou no caso do uso e do desuso de órgãos. Ele sabia que em cavernas, animais perdiam seus olhos. Então disse: “Veja, eles não estão usando, e essa mudança fisiológica é transmitida aos descendentes”. Isso fazia bastante sentido. Quase todo mundo no século 19 pensava assim. Lamarck achava que as mudanças fisiológicas que os animais sofriam eram imediatamente traduzidas em mudanças herdadas. A coisa não é tão simples quanto ele pensava, mas nada é tão simples quanto as pessoas do século 19 pensavam. O modo como aprendemos Darwin e o interpretamos hoje não é o modo com que ele descrevia a própria teoria. Se você analisar “A Origem das Espécies” e “Variações em Animais e Plantas sob Domesticação”, verá que Darwin tinha uma teoria hereditária totalmente lamarckista. Dizer que alguém é lamarckista é chamar essa pessoa de estúpida, confusa e dizer que ela não sabe o que fala. Na história do lamarckismo há muitos charlatães, mas isso existiu também no darwinismo. A eugenia criou muitos horrores. Acho que chegamos ao ponto em que podemos dizer: “Veja, não vamos adotar o lamarckismo no sentido antigo”. Claro que não. Mas há mecanismos que permitem que variações induzidas pelo desenvolvimento sejam herdadas. Quem não quiser chamar isso de lamarckismo, pode dar qualquer outro nome. Mas eu acho que é compatível com o que Lamarck e outros lamarckistas falavam. Acho que aquilo que eu espero pode acontecer em uns dez ou vinte anos, quando eu já for uma velha senhora (risos). Espero viver para ver os manuais para estudantes de ensino médio escritos de modo diferente: “Houve um período de 60 anos no qual o lamarckismo foi considerado uma impossibilidade, mas agora sabemos que há alguns processos lamarckistas na hereditariedade etc.”
— Evidências que sugerem mudanças na evolução costumam servir de munição para os criacionistas. O criacionismo está tentando se apropriar do seu trabalho?
Difícil dizer. Até agora eles não usaram isso, mas porque eu e Marion [Lamb, da Universidade de Londres] fomos muito cuidadosas. Em nosso livro [“Evolution in Four Dimensions”, de 2005] dissemos muito claramente o que achamos dos criacionistas. E não foram palavras boas. Algumas pessoas dizem que problemas para os quais os criacionistas apontam na biologia evolutiva podem ser resolvidos se eles entenderem a perspectiva epigenética. Um deles é a evolução convergente. Eles afirmam que o darwinismo não pode explicá-la —eles mesmos, é claro, não conseguem explicá-la, mas não importa. Se a indução do ambiente é importante em evolução, há mecanismos básicos regulatórios similares para os quais faz muito sentido que, nos mesmos ambientes, haja reações adaptativas similares. Mesmo que sejam reações inadequadas, elas seriam similares, se houver algum paralelismo no sistema para tal. Mas é claro que os sistemas são completamente diferentes. Isso [a epigenética] pode tornar mais compreensível como esse tipo de paralelismo pode acontecer. Com a hereditariedade epigenética, você tem seleção mais previsível. Além de selecionar variações genéticas, pode selecionar variações epigenéticas. Dá para ter seleção e evolução aí. Então, de certa maneira, ela aumenta o poder da seleção, porque há mais coisas herdadas que podem ser selecionadas. Uma vez que as variações epigenéticas são em geral variações na expressão de genes —não uma variação neste ou naquele DNA nuclear— num nível diferente de organização biológica, a probabilidade de elas serem “visíveis” para a seleção natural é grande. Acho interessante que, apesar de os criacionistas tentarem agarrar tudo o que pensam poder ajudá-los, eles estejam sendo cautelosos conosco. Eu realmente não quero entrar nessa discussão, porque não acho que eles tenham nada a oferecer intelectualmente.
— No que a sra. está trabalhando agora? Está fazendo algo em laboratório?
Não. Sou uma bióloga teórica. Fiz meu doutorado em genética experimental, mas não trabalho no laboratório há um bom tempo. No momento, estou interessada em dois assuntos. Um deles é o papel dos mecanismos de controle epigenético em macroevolução [estudo da evolução levando em conta muitos grupos de espécies]. Não estou certa disso, mas estou começando a explorar a literatura científica para tentar dizer o que está acontecendo e para ver os dados que têm saído dos experimentos para saber se algum pode validar a hipótese de que esses mecanismos estejam por trás de alguns processos de reorganização que acontecem em condições de estresse. Um estudo recente com galináceos mostrou que se você submete um casal a estresse, torna-os incapazes de prever o ambiente etc., eles têm dificuldade para aprender. Depois ele olha para a prole dessas aves. O que se viu é que, em espécies selvagens, os pais são estressados, mas os filhotes estão OK. Mas o mesmo padrão de expressão de genes está alterado em ambos os casos, então estão investigando o cérebro agora. O outro assunto é a evolução de sistemas nervosos primários. Como eles evoluíram para “experimentar”, algo importante para a evolução da consciência. Mas esse trabalho não tem relação com epigenética.
— Como seu trabalho sobre epigenética pode afetar o debate sobre a unidade de seleção em evolução? O que a sra. diz está de acordo com a noção difundida pelo zoólogo britânico Richard Dawkins, a de que o gene é uma entidade “egoísta” e autônoma que manda no processo evolutivo?
Acho que pensar em termos de genes egoístas não ajuda, e acho que há um monte de confusão sobre isso. A maneira de pensar sobre isso deve ser a de pensar em “inputs” ao desenvolvimento. Você pode ter um “input” genético, um “input” epigenético etc. Mas esses não são apenas “inputs” em desenvolvimento, mas em hereditariedade. Se você pensar dessa maneira, conceber um “input egoísta” não faz sentido. Acho que há uma grande confusão na maneira como Dawkins apresentou todo esse assunto. Ele o apresentou como se as alternativas fossem a seleção do gene, do indivíduo ou do grupo. Isso não é verdade. Ninguém nunca pensou que o indivíduo fosse a unidade de seleção. O indivíduo é um “alvo” da seleção. A alternativa ao gene como unidade de seleção, na verdade, são os caracteres, os traços dele: a característica “herdável” e variável. Essa é a unidade de seleção e acredito que ela deve ser a unidade de seleção. Claro que aquilo que morre e se reproduz é o indivíduo. Às vezes é o grupo. Mas a unidade de seleção é a característica, para a qual existem muitos “inputs” que afetam a “herdabilidade”. Essa é a maneira correta de tratar a evolução e eu não estou disposta a passar minha vida discutido sobre Dawkins e brincando no “parque de diversões” que ele construiu, porque acho que ele está errado. Ele define o problema da maneira errada e então dá a resposta errada. Como o indivíduo pode ser a unidade de seleção? Não dá. Só pode ser o alvo. É preciso que a unidade de seleção seja algo para onde você olha de tempos em tempos e vê mudanças ao longo do tempo entre as gerações. O que, então? Mudanças nos genes? Não sou contra pensar no gene como algo que muda ao longo do tempo evolutivo. É claro que ele muda, mas se você pensa em termos de evolução adaptativa, você está interessado em características e mudanças dessas características. Essa é uma unidade da evolução muito importante, e ninguém nunca achou que os indivíduos fossem a unidade de seleção, no sentido em que Dawkins caricaturou. Outra coisa é que Dawkins caracterizou o gene como a única unidade hereditária digna desse nome —exceto pelo meme [o “gene” cultural]— e não há nada no meio disso. Mas eu acho que há uma grande variedade de coisas entre essas duas. Não é uma coincidência Dawkins não saber de nada sobre herança epigenética, ou nunca tê-la mencionado. Acho que ele é um bom advogado. Mas aqui não se trata de defender um argumento, trata-se de descobrir coisas sobre o mundo.
(Folha de SP, 11/11)
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Fui, pensando seriamente que a Nomenklatura científica está trabalhando a todo vapor a fim de entregar para os usuários a nova versão de Darwin 3.0 em 2010.