A luta dos monstros
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de junho de 2006
Que tal descansar por uns instantes do caos político nacional, contemplando o caos intelectual do mundo? Quem sabe um breve rodeio pela confusão alheia não acabará esclarecendo um pouco a confusão local?
Semanas atrás, a TV educativa estatal americana PBS, fazendo eco a uma declaração conjunta de 67 sociedades científicas, proclamou que “praticamente todos os cientistas do mundo acreditam na teoria da evolução”. Poucos dias depois, seiscentos cientistas, pertencentes a essas sociedades e a outras tantas, divulgaram um manifesto dizendo que não acreditavam nessa teoria de maneira alguma.
O debate, evidentemente, já não é mais científico: é político, é ideológico. Carl Schmitt definia o reino da política como aquele campo de conflitos em que nenhuma arbitragem racional é possível, só restando a cada um dos contendores reunir os “amigos” contra os “inimigos”. O número de partidários de cada corrente e a manifesta inexistência de critérios de arbitragem aceitos por ambos os lados mostram que a disputa de evolucionistas e antievolucionistas é política, nada mais que política. No confronto, a vantagem institucional está com os primeiros. Eles dominam a maior parte dos órgãos de pesquisa e ensino, têm o apoio dos governos e o respaldo da grande mídia. Os segundos, em minoria, têm uma militância mais ativa e vêm logrando abrir espaços que, trinta anos atrás, pareciam definitivamente conquistados pelo adversário. Mas ainda estão longe de obter o que mais querem: que suas objeções sejam ensinadas nas escolas, junto com os argumentos evolucionistas. Se a evolução fosse uma teoria científica, seu próprio ensino abrangeria necessariamente o estudo dessas objeções. Mas os evolucionistas não se contentam com isso: querem que sua doutrina seja universalmente proclamada um “fato”, uma verdade terminal cuja contestação, em nada ajudando o progresso do conhecimento, deve ser suprimida como uma provocação intolerável, uma heresia, um crime.
Intelectualmente, os antievolucionistas têm um trunfo notável. Ao contrário do que sucede na arte militar, onde a batalha defensiva é mais fácil do que a ofensiva, nos confrontos de doutrinas o atacante entra em campo com vantagem: contra qualquer teoria que pretenda ter autoridade explicativa universal, um único exemplum in contrarium, devidamente confirmado, é de uma força explosiva ilimitada -- e contra o evolucionismo esses exemplos são tantos quantas as formas intermediárias, infinitas em princípio, faltantes para provar a evolução contínua de uma única espécie animal. Durante quase um século o evolucionismo conseguiu escapar dessa dificuldade letal por meio de dois expedientes: forjar criaturas intermediárias, vendendo-as como provas científicas, e alegar a inexistência de teorias concorrentes. Mas, com o primeiro desses truques, expôs-se ao ridículo, e com o segundo atraiu inevitavelmente a objeção de que o desconhecimento da verdade não é um argumento válido em favor da mentira.
Enquanto se mantiveram numa posição puramente crítica, os inimigos do evolucionismo podiam se considerar intelectualmente invencíveis, mas isso não os satisfazia, porque a crítica não tem sobre a psicologia das massas o poder sugestivo que têm as crenças afirmativas, mesmo falsas. Enquanto o antievolucionismo se refugiava na torre-de-marfim das superioridades incompreendidas, seu adversário, incapaz de fornecer em seu próprio favor senão indícios que eram invariavelmente impugnados por outros indícios, conseguia no entanto um sucesso estrondoso como “concepção do mundo”, como mito fundador do moderno Estado leigo -- seja comunista ou democrático. À medida que dinossauros e antropóides emergiam dos livros de paleontologia para os filmes de ficção científica, a imaginação popular tornou-se decisivamente “evolucionista”, e tanto mais satisfeita com a sua visão mitológica quanto mais persuadida de falar em nome da “ciência” e não da mera “fé” (no sentido mais vulgar e estereotipado destes termos).
Um dia, cansados de buscar no isolamento um abrigo contra os risos fáceis do populacho, os antievolucionistas decidiram trocar a certeza intelectual da crítica pela construção de um mito científico reativo, que hoje opõem ao evolucionismo sob o título de “design inteligente”. Segundo essa doutrina, o universo é coerente e harmônico demais para ter-se formado pela mera conjunção fortuita de causas físicas: deve haver uma intenção, um propósito consciente por trás de tudo. Tanto quanto o próprio evolucionismo, o design inteligente não é uma teoria científica: é uma concepção do mundo, que mistura a elementos de argumentação científica requintada o atrativo nostálgico da fé religiosa, do mesmo modo que o evolucionismo mistura pedaços de boa ciência com o apelo quase irresistível do ódio anti-religioso, portador de ofertas sedutoras como a liberação sexual, o casamento gay, a satisfação de todas as exigências do feminismo enragé e a distribuição estatal de drogas para os aficionados.
Quando Darwin ainda não existia nem como espermatozóide, Immanuel Kant já havia notado que toda teoria evolutiva das espécies animais esbarraria no problema das séries infinitas, insolúvel por definição. Os evolucionistas não perceberam isso até hoje, mas não estão nem aí. Para o seu nível de exigência intelectual, esse problema é demasiado “metafísico”. Não por coincidência, a doutrina de seus adversários também tropeça num problema “metafísico” para o qual eles não estão nem ligando. É que nenhuma coleta de indícios físicos, por mais vasta e meticulosa, pode provar a existência de um “sentido” por trás do que quer que seja. Se existe um Deus criador infinitamente perfeito, bondoso e inteligente, Ele não pode ter transmitido à criação senão uma parcela ínfima das Suas perfeições: o exame do tecido do cosmos revelará sempre tantos indícios de ordem e harmonia quanto de desordem e absurdidade. Ainda que os primeiros sejam, em princípio, superiores em número, a prova final disso requereria o conhecimento quantitativo integral de todos os fatos cósmicos sem exceção. O “significado” está sempre para além da estrutura material do significante. Se isso acontece na linguagem humana, não há razão para que seja diferente na linguagem divina. O significado de um livro, por exemplo, não pode ser alcançado pela análise físico-química do papel e da tinta, pela medição do seu formato ou pelo desenho geométrico das letras. Ele não está “no” livro: está na mente do autor e do leitor, unidos pela posse comum de procedimentos de codificação e decodificação. O sentido é, por definição, “transcendente”. Não pode ser apreendido pelo conhecimento anatômico, fisiológico ou físico-químico da imanência.
O significado do cosmos está para além do cosmos, para além do espaço e do tempo. Longe de poder ser demonstrado pela ordem racional da natureza ou da história, ele tem de ser pressuposto para que a idéia mesma dessa ordem racional se torne pensável. O filosofo americano Glenn Hughes, nesse livro maravilhoso que é Transcendence and History (University of Missouri Press, 2003), observa que, sem a idéia de um Deus transcendente, a própria concepção de uma unidade da espécie humana – para não falar da unidade da história -- seria inalcançável por falta de um molde superior unificante. O curso integral da história não pode provar ou desprovar Deus, mas sem Deus não teríamos a visão de um curso integral da história. O design inteligente não pode provar Deus porque Deus não pode ser espremido para dentro do corpo imanente do cosmos. Por mais sinais da Sua presença que se observem no universo, eles nunca provarão nada, pela simples razão de que estarão sempre misturados a sinais da Sua ausência e incomensurabilidade. Sto. Tomás já havia observado que a relação entre o conhecimento do mundo e o conhecimento de Deus não é lógica, mas analógica. A analogia é uma síntese ordenada de semelhanças e diferenças. Para que o design inteligente provasse Deus, seria preciso que as semelhanças engolissem as diferenças. O céu e a terra podem “celebrar” a glória de Deus, mas não podem contê-la em si materialmente ao ponto de tornar possível prová-la em laboratório.
Criando seu próprio mito científico, os críticos do evolucionismo abdicaram da autoridade intelectual para poder concorrer com o adversário no seu próprio terreno. Não resta dúvida de que com isso conseguiram espaço na mídia, atenção de governos e algumas vitórias judiciais modestas mas promissoras. Se isso ajudar a quebrar a carapaça dogmática de uma doutrina que pretende continuar científica sem admitir discussão científica, o resultado pode ser proveitoso. Mas, se for para reduzir o sentido do cosmos a um elemento do próprio cosmos, então o efeito último da empreitada será levar a humanidade para mais longe de Deus do que jamais poderia levá-la o materialismo puro e simples. Proclamar a divindade da imanência seria encerrar definitivamente a humanidade na prisão cósmica, seria fechar a porta dos céus.
A seriedade aparente do debate entre os evolucionistas e os adeptos do design inteligente revela, na intelectualidade acadêmica mundial – para não falar da mídia “cultural” –, uma assustadora incapacidade para a análise filosófica e uma confiança excessiva na autoridade da “ciência” como árbitro final de todas as disputas humanas.
Que é uma “ciência”, afinal? É um esforço contínuo e sistemático de reduzir a uns quantos princípios explicativos comuns, por meio de procedimentos de verificação consensualmente admitidos, os fenômenos observados dentro de um campo de realidade recortado segundo o que, de início – e antes de que se pudesse ter qualquer prova disso --, parecia ser a esfera de validade possível desses mesmos princípios. Resultado: quando a observação empírica não confirma os princípios, quase nunca se pode estar seguro de que não virão a fazê-lo amanhã ou depois; quando confirma, é muito difícil garantir que o campo não foi recortado de propósito para produzir artificialmente esse efeito. Na melhor das hipóteses, uma boa descoberta científica é um meio-termo sensato entre uma aposta no escuro e uma profecia auto-realizável. Buscar esse meio-termo é um desafio que está acima das forças de qualquer ciência em particular e transcende os limites de toda “metodologia científica” usual. Depende inteiramente da análise filosófica, para a qual a maioria dos cientistas de ofício não recebe qualquer treinamento apreciável. Sem o filtro dessa análise, a “ciência” não é uma atividade intelectualmente muito séria. Com ele, ela é freqüentemente obrigada a admitir que seu trabalho consiste num estudo cada vez mais preciso de objetos cada vez mais hipotéticos, evanescentes e inapreensíveis. Se pessoas dedicadas a um empreendimento tão incerto aparecem de repente enrijecidas em suas posições e inflamadas em suas crenças como se fossem teólogos medievais a disparar anátemas recíprocos, isso se explica pela mesma causa psicológica que incendiava as disputas medievais. Um teólogo do século XII, como um cientista de hoje, não era um simples buscador de conhecimento: era ao mesmo tempo o representante do establishment, do poder cultural supremo. O poder não discute, não dialetiza: afirma e dá ordens. Dizer que ele reprime as contradições é pouco: ele nega a existência delas. Seu ideal é tornar-se indiscernível da estrutura da realidade, personificar a força do inevitável, a lei da natureza ou a vontade de Deus. Quando o homem incumbido disso é um intelectual, um letrado, logo ele se vê prisioneiro de um conflito interior dilacerante. De um lado, a consciência que ele tem das ambigüidades, das contradições, das perguntas insolúveis. De outro, a necessidade de fingir em público uma certeza inabalável. O dilema é geralmente resolvido pelo expediente neurotizante de exagerar histericamente a ostentação de certeza. Teólogos defendendo aos gritos hipóteses que só poderiam ser confirmadas por uma nova revelação divina faziam exatamente o mesmo que os zelotes evolucionistas fazem hoje, ao demitir da profissão acadêmica o adversário propugnador de uma objeção para a qual sabem perfeitamente que não têm nenhuma resposta definitiva. Transpondo o debate da esfera racional para as decisões de autoridade, encontram uma solução política para um problema que, na origem, era intelectual e científico.
A brutalidade crescente das proclamações dogmáticas evolucionistas não é mera coincidência: ela vem junto com a instauração progressiva de uma Nova Ordem global cujo discurso legitimador é eminentemente de ordem “científica”. Prepotência globalista e autoritarismo científico são uma só e mesma coisa. A pretensão ao poder mundial absoluto tem de passar pelo desafio preliminar de dar à profissão científica uma autoridade final comparável à dos concílios. Por exemplo, é preciso impor à população a mentira idiota de que a falta de provas científicas de alguma coisa é prova cabal da inexistência dessa coisa. Esse preceito, para se sustentar de pé, exige a anuência geral a dois axiomas psicóticos: (1) a ciência já sabe tudo; (2) nada do que ela vier a descobrir amanhã pode impugnar o que ela diz hoje. A autoridade da ciência para afirmar a inexistência do que ela desconhece baseia-se na negação radical do próprio conceito de ciência, mas isso não impede que o apelo a essa autoridade tenha, na perspectiva do establishment global, uma validade jurídica inapelável. Quando um sujeito vai para a cadeia por ter dito que o homossexualismo é doença, a lei que o pune é inteiramente baseada no pressuposto de que, não havendo provas científicas do que ele diz, ele não tem o direito de conjeturar em voz alta que essas provas possam vir a ser encontradas amanhã ou depois.
A situação torna-se ainda mais desesperadoramente absurda quando a autoridade da ignorância científica é alegada como prova de algo que, por definição, está excluído do campo de investigação dessa mesma ciência. A embriologia, por exemplo, confessa não ter como distinguir entre um feto humano e um feto de chimpanzé aos três meses de gestação. Isso prova uma limitação da ciência embriológica, e não do potencial que homens e chimpanzés, já desde o início da gestação, têm para continuar a desenvolver-se e diferenciar-se depois de encerrado o processo embriológico, isto é, depois de saírem da alçada da embriologia. Não obstante, a autoridade da embriologia é usada como prova de que abortar um feto humano até os três meses não é mais grave do que fazer o mesmo com um macaquinho da mesma idade -- com a diferença de que provocar o aborto de um macaquinho dá cadeia, sem que se possa alegar nem mesmo que ele é um feto humano de três meses, descartável como uma camisinha usada. Mutatis mutandis, a antropologia exclui do seu campo o estudo das diferenças de valor entre as várias culturas, mas sua autoridade é em seguida usada pelos relativistas e multiculturalistas como prova de que essas diferenças não existem. Em suma: cada ciência fica tanto mais habilitada a emitir sentenças finais no debate público quanto mais o assunto do debate é alheio ao seu domínio de estudos.
Entre os anos 20 e 60 do século XX, as discussões entre evolucionistas e antievolucionistas eram polidas como qualquer outra discussão acadêmica, contrastando com as inflamadas disputas científico-teológicas oitocentistas. A Nova Ordem mundial, na sua ambição de suprimir as tradições religiosas ou subjugá-las a uma nova religião de cunho gnóstico improvisada por planejadores sociais, adotou o evolucionismo como uma de suas principais armas de ataque. Daí que o debate, subitamente politizado, tenha se tornado ainda mais feroz do que era no século XIX. Mas nem tudo é ordem e coerência no projeto globalista. Sua afeição nominal ao compromisso democrático dá margem a que os inimigos do evolucionismo também se organizem politicamente para impor a vigência do seu próprio mito.
A luta formidável dos poderes mitológicos repete a imagem bíblica de Leviatã e Behemoth, o crocodilo da rebelião que se agita no fundo das águas e o hipopótamo da ordem divina que o esmaga sob seus pés. Na Bíblia, Deus aponta de longe as duas criaturas ao perplexo Jó, advertindo-lhe que ambos são monstros temíveis. Se confinado no interior da alma, o conflito espiritual poderia levar à sabedoria. Materializado sob a forma dos poderes políticos que se entrechocam no cenário da história, torna-se fonte de sofrimento e obscuridade sem fim.