19. O desenvolvimento científico no Brasil do século XIX
Livro sobre a ciência no Brasil na época da chegada da corte de D. João VI deverá ser lançado ainda neste ano
No início do século XIX, um dos limites do centro do Rio de Janeiro era a rua da Vala. Formada em toda a sua extensão por um canal de esgoto, parcialmente coberto por lages, a atual Uruguaiana era, no discurso médico da época, um dos pontos insalubres da cidade. O alto dos morros, onde se localizavam quase todas as instituições religiosas, estava, ao contrário, entre as áreas consideradas como mais aprazíveis.
O cotidiano dos habitantes do Rio era marcado pela convivência com regiões alagadiças - focos de mosquitos e doenças - e, ao mesmo tempo, pela dificuldade de abastecimento de água potável, apesar dos diversos chafarizes espalhados pela região urbana.
Todos esses pontos considerados importantes da cidade à época da chegada da Corte portuguesa ao Brasil estão sinalizados no esquema cartográfico do livro que está sendo organizado pelas pesquisadoras Lorelai Kury, da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), e Heloísa Gesteira, do Museus de Astronomia e Ciências Afins (Mast).
Fruto do seminário "As ciências no Brasil no período joanino", organizado pelas duas instituições e que, com apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), em 2008 discutiu o tema, o livro, atualmente objeto de negociações com uma editora universitária, deve sair ainda em 2010.
Com a criação de várias instituições científicas, como a Escola Médico-Cirúrgica e a Real Biblioteca, o pensamento corrente é de que a transferência da família real para o Rio de Janeiro seria um ponto de ruptura no desenvolvimento da ciência no país. Não é exatamente o que pensam os autores dos vários artigos reunidos no livro.
Lorelai explica por quê: "Na verdade - e esse é um consenso entre os autores -, podemos, em certa medida, falar em continuidade de um processo que já vinha ocorrendo desde meados do século XVIII. Com a vinda de D. João - ele só se torna D. João VI depois da morte de D. Maria I -, as políticas de valorização da cidade como centro político só se fortalecem. E passa a predominar também a sensação de se imaginar o Rio Janeiro agora como centro de poder", diz Lorelai.
Segundo a pesquisadora, paralela à construção de um campo científico, começava a se consolidar entre os homens de ciência lusoamericanos a certeza de que era possível produzir conhecimento numa nação situada nos trópicos.
Na segunda metade do século XVIII, foram fundadas, no Rio, a Academia Científica e a Casa de História Natural, numa tendência que prossegue, em princípios do XIX, quando se instalam por aqui diversas instituições, como a Real Biblioteca, a Real Academia Militar e o Jardim Botânico.
Igualmente importantes para a ciência são a migração para o Brasil da Fisicatura Mor, órgão que fiscaliza o exercício da prática médica e normatiza a formação acadêmica; e da Imprensa Régia, com a publicação dos primeiros jornais e livros impressos no Rio de Janeiro e na Bahia, possibilitando a formação e aprimoramento de grupos técnicos e a divulgação de trabalhos científicos.
"A publicação de livros técnicos e manuais de medicina, por exemplo, é um grande diferencial para a formação científica no país", fala a pesquisadora. O Rio de Janeiro paulatinamente vai se tornando também um lugar de produção de conhecimento. "Criava-se no Brasil um espaço público letrado, de circulação de ideias e formação de opinião; estabeleciam-se novas formas de sociabilidade", explica a pesquisadora.
O fim das guerras napoleônicas, em 1815, marcou também o aumento na vinda de viajantes estrangeiros ao país e a quantidade de estudos sobre o Brasil cresce de forma significativa. "Foi um divisor de águas, já que a quantidade e a qualidade de informações, comparadas às pesquisas anteriores e publicações resultantes, passaram a ser enormes", diz a pesquisadora.
O estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro contribuiu para a manutenção da unidade territorial da América portuguesa. "Nesse sentido, a produção de conhecimento sobre o espaço e as populações brasileiras foi estratégica neste processo. Posteriormente, durante a Independência e a construção do Estado imperial, instituições criadas no período joanino tiveram papel de destaque no mapeamento da nação brasileira", explica Lorelai.
Outro marco importante foi a criação, em 1808, da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro - inicialmente nas dependências do Hospital Real Militar e Ultramar, e mais tarde sediada no antigo Colégio dos Jesuítas, sede do Hospital Real Militar e Ultramar, no morro do Castelo -, quando institui-se o curso de cirurgia no Rio de Janeiro.
Sua proposta curricular, inicialmente restrita a conhecimentos de cirurgia e de anatomia, passa a incluir também as disciplinas de anatomia e fisiologia, terapêutica cirúrgica e particular, medicina cirúrgica e obstétrica, medicina, química e elementos de matéria médica e de farmácia.
Antes da criação da escola, o exercício da medicina era facultado somente a físicos e cirurgiões licenciados pelo cirurgião-mor do Reino. Eles estavam habilitados apenas a aplicar sangrias e ventosas, a curar feridas e fraturas, mas eram impedidos de prescrever medicamentos, o que só era permitido a médicos formados em Coimbra.
"A criação das escolas - e, posteriormente, das faculdades - de medicina significava também o fim dessas restrições e a possibilidade de formação de médicos no país", diz Lorelai. No exercício das práticas médicas, no entanto, convivem tanto os profissionais de formação acadêmica quanto aqueles, menos formais, que praticam o conhecimento popular.
Os próprios limites do centro da cidade também passam a se estender para os lados do Campo de Santana, onde já ocorriam algumas festas oficiais, com a valorização das terras em redor e a instalação de residências da nobreza na região. Com isso, obras públicas também começam a transformar toda aquela área. O mesmo acontece em São Cristóvão, com a mudança da família real para a quinta construída pelo comerciante português Elias Antonio Lopes naquele bairro.
"Nessa nova configuração, médicos e engenheiros ganham importância já que são os profissionais a ditar os critérios de salubridade que norteiam as mudanças na cidade", diz. Se até o início do século XIX, se olhava para o Rio de Janeiro como um lugar quase impossível de se viver, depois o olhar passa a ser mais pragmático, de intervenção, mas também mais otimista, de pensar o que se podia fazer para melhorar. "A ideia de incompatibilidade de uma civilização nos trópicos passa a se contrapor à formação de uma identidade nacional", conclui.
(Vilma Homero, Boletim On-line da Faperj)
Lorelai explica por quê: "Na verdade - e esse é um consenso entre os autores -, podemos, em certa medida, falar em continuidade de um processo que já vinha ocorrendo desde meados do século XVIII. Com a vinda de D. João - ele só se torna D. João VI depois da morte de D. Maria I -, as políticas de valorização da cidade como centro político só se fortalecem. E passa a predominar também a sensação de se imaginar o Rio Janeiro agora como centro de poder", diz Lorelai.
Segundo a pesquisadora, paralela à construção de um campo científico, começava a se consolidar entre os homens de ciência lusoamericanos a certeza de que era possível produzir conhecimento numa nação situada nos trópicos.
Na segunda metade do século XVIII, foram fundadas, no Rio, a Academia Científica e a Casa de História Natural, numa tendência que prossegue, em princípios do XIX, quando se instalam por aqui diversas instituições, como a Real Biblioteca, a Real Academia Militar e o Jardim Botânico.
Igualmente importantes para a ciência são a migração para o Brasil da Fisicatura Mor, órgão que fiscaliza o exercício da prática médica e normatiza a formação acadêmica; e da Imprensa Régia, com a publicação dos primeiros jornais e livros impressos no Rio de Janeiro e na Bahia, possibilitando a formação e aprimoramento de grupos técnicos e a divulgação de trabalhos científicos.
"A publicação de livros técnicos e manuais de medicina, por exemplo, é um grande diferencial para a formação científica no país", fala a pesquisadora. O Rio de Janeiro paulatinamente vai se tornando também um lugar de produção de conhecimento. "Criava-se no Brasil um espaço público letrado, de circulação de ideias e formação de opinião; estabeleciam-se novas formas de sociabilidade", explica a pesquisadora.
O fim das guerras napoleônicas, em 1815, marcou também o aumento na vinda de viajantes estrangeiros ao país e a quantidade de estudos sobre o Brasil cresce de forma significativa. "Foi um divisor de águas, já que a quantidade e a qualidade de informações, comparadas às pesquisas anteriores e publicações resultantes, passaram a ser enormes", diz a pesquisadora.
O estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro contribuiu para a manutenção da unidade territorial da América portuguesa. "Nesse sentido, a produção de conhecimento sobre o espaço e as populações brasileiras foi estratégica neste processo. Posteriormente, durante a Independência e a construção do Estado imperial, instituições criadas no período joanino tiveram papel de destaque no mapeamento da nação brasileira", explica Lorelai.
Outro marco importante foi a criação, em 1808, da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro - inicialmente nas dependências do Hospital Real Militar e Ultramar, e mais tarde sediada no antigo Colégio dos Jesuítas, sede do Hospital Real Militar e Ultramar, no morro do Castelo -, quando institui-se o curso de cirurgia no Rio de Janeiro.
Sua proposta curricular, inicialmente restrita a conhecimentos de cirurgia e de anatomia, passa a incluir também as disciplinas de anatomia e fisiologia, terapêutica cirúrgica e particular, medicina cirúrgica e obstétrica, medicina, química e elementos de matéria médica e de farmácia.
Antes da criação da escola, o exercício da medicina era facultado somente a físicos e cirurgiões licenciados pelo cirurgião-mor do Reino. Eles estavam habilitados apenas a aplicar sangrias e ventosas, a curar feridas e fraturas, mas eram impedidos de prescrever medicamentos, o que só era permitido a médicos formados em Coimbra.
"A criação das escolas - e, posteriormente, das faculdades - de medicina significava também o fim dessas restrições e a possibilidade de formação de médicos no país", diz Lorelai. No exercício das práticas médicas, no entanto, convivem tanto os profissionais de formação acadêmica quanto aqueles, menos formais, que praticam o conhecimento popular.
Os próprios limites do centro da cidade também passam a se estender para os lados do Campo de Santana, onde já ocorriam algumas festas oficiais, com a valorização das terras em redor e a instalação de residências da nobreza na região. Com isso, obras públicas também começam a transformar toda aquela área. O mesmo acontece em São Cristóvão, com a mudança da família real para a quinta construída pelo comerciante português Elias Antonio Lopes naquele bairro.
"Nessa nova configuração, médicos e engenheiros ganham importância já que são os profissionais a ditar os critérios de salubridade que norteiam as mudanças na cidade", diz. Se até o início do século XIX, se olhava para o Rio de Janeiro como um lugar quase impossível de se viver, depois o olhar passa a ser mais pragmático, de intervenção, mas também mais otimista, de pensar o que se podia fazer para melhorar. "A ideia de incompatibilidade de uma civilização nos trópicos passa a se contrapor à formação de uma identidade nacional", conclui.
(Vilma Homero, Boletim On-line da Faperj)