O voo dos pterossauros reexplicado
Ciência Hoje
Tecidos moles de fósseis chineses levam a um novo entendimento da membrana alar desses répteis
As espécies extintas costumam ser conhecidas apenas pelos seus esqueletos. Praticamente nada se sabe sobre sua anatomia externa (e interna), pois é difícil encontrar fósseis com boa preservação dos chamados tecidos moles – ou seja, todas as estruturas de um animal que não são ossos ou dentes.
O estudo de fósseis de um indivíduo da espécie Jeholopterus ningchengensis está levando os paleontólogos a reavaliar o que sabiam sobre o voo dos pterossauros. O exemplar em questão foi encontrado na China em 2002, em duas metades: a da esquerda apresenta a maior parte do esqueleto, e a da direita, a maior parte do tecido mole preservado (fotos: Proceedings of the Royal Society B).
Com os pterossauros não é diferente. Mas uma feliz exceção acaba de vir à tona com a descrição de um animal encontrado em excepcional estado de preservação. A descoberta, apresentada com destaque esta semana pela revista britânica Proceedings of the Royal Society, levou a uma reavaliação de tudo o que acreditávamos saber sobre a membrana alar desses répteis voadores.
A novidade surgiu do estudo de fósseis de uma espécie de pterossauro descoberta em 2002 no nordeste da China, na província da Mongólia Interior. O novo réptil voador, batizado de Jeholopterus ningchengensis, havia sido descrito por pesquisadores do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia (IVPP) liderados por Xiaolin Wang.
O Jeholopterus foi encontrado nas camadas Daohugou, formadas entre 140 e 130 milhões de anos – são as mais antigas do conjunto de depósitos do Grupo Jehol, que tem tido cada vez mais destaque mundial. É raro o registro de pterossauros nas camadas Daohugou, ao contrário do que se verifica nas demais unidades do Grupo Jehol.
Tecidos moles
A descoberta do fóssil era por si só interessante, por se tratar de um representante de um grupo muito raro chamado de Anurognathidae. O Jeholopterus era o segundo registro na China desse grupo, só encontrado antes na Alemanha e no Cazaquistão.
Um outro fator tornava o achado especial: junto com os ossos estava preservado tecido mole – ou seja, parte do couro do pterossauro. Na descrição original dos fósseis, os pesquisadores chineses já haviam notado a preservação desse material. Na época, porém, eles não estudaram detalhadamente essas estruturas.
Detalhes de tecido mole do Jeholopterus ningchengensis preservado nos fósseis. O bom estado de preservação desses tecidos – bastante raro em répteis pré-históricos – permitiu uma novo entendimento da estrutura de sua membrana alar.
A análise desses tecidos seria feita posteriormente e revelaria feições desconhecidas até então. O trabalho foi feito por uma colaboração internacional que envolveu paleontólogos da China, Brasil, Alemanha e Inglaterra, e contou com a participação de Xiaolin Wang, Helmut Tischlinger, Diogenes de Almeida Campos, David Hone e Xi Meng, além deste colunista.
Revestimento dos pterossauros
O revestimento do corpo dos pterossauros é uma questão que divide os especialistas desde que um pesquisador russo descreveu uma espécie de réptil voador do Cazaquistão. Entre as características do animal, destacavam-se o corpo e as asas revestidos por estruturas semelhantes a pelos – evocadas no nome escolhido para batizar a nova espécie, Sordes pilosus.
Anos depois, esse estudo foi contestado, com pesquisadores afirmando que o Sordes era desprovido desses supostos "pelos", com exceção da região do pescoço – o que deixava, portanto, a questão em aberto.
Imagem dos fósseis do J. ningchengensis obtida com luz ultravioleta. Essa técnica ressalta os tecidos moles preservados de um fóssil e permitiu estudá-los em detalhe.
A descoberta de Jeholopterus mostra, de forma inequívoca, que o corpo desse pterossauro era coberto por estruturas filamentares. Essas estruturas não são homólogas aos pelos dos mamíferos e foram denominadas no estudo que acaba de ser publicado de picnofibras – do grego pycnos, que significa denso.
Os animais recentes endotérmicos – isto é, capazes de controlar a temperatura de seu corpo – são revestidos por estruturas que se originam na superfície da pele. Assim, caso a presença de picnofibras seja uma condição comum a todas as espécies de pterossauros, isso corroboraria a hipótese de que esses répteis alados eram endotérmicos, assim como os mamíferos e aves, e diferentemente dos lagartos e crocodiliformes.
Membrana alar
Os especialistas em pterossauros acreditavam até agora que a sua membrana alar era formada por uma única camada de fibras estruturais – as actinofibras. Havia discussões, no entanto, sobre a localização dessa camada – na parte inferior ou no meio da membrana alar.
Mas uma nova visão sobre essa questão veio de um exame detalhado do Jeholopterus feito com uma técnica que recorre a lâmpadas de ultravioleta e filtros que refletem de forma diferenciada os tecidos preservados de um fóssil. Essa análise levou a um detalhamento do tecido mole encontrado e permitiu a identificação de até três camadas de actinofibras dentro da membrana alar.
Isso mostra que as asas dos pterossauros eram mais resistentes do que se acreditava e podiam ser esticadas e retraídas em diferentes direções. Ou seja, uma conclusão importante do estudo é que os pterossauros não somente planavam, mas possuíam absoluto controle sobre o voo.
O estudo dos fósseis do Jeholopterus mostrou que esse réptil tinha três camadas de actinofibras em sua membrana alar. Isso indica que ele tinha controle absoluto sobre o voo (arte: André Pinheiro).
Suporte importante
É importante destacar que o estudo do Jeholopterus foi feito com financiamento da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). A equipe de pesquisadores da China que participou dos trabalhos teve apoio de instituições de fomento à pesquisa daquele país.
Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
05/08/2009