JC e-mail 3828, de 17 de Agosto de 2009.
24. Tecnologia e inspiração, artigo de Marcelo Gleiser
"Não fosse a confiança em nossa criatividade, teorias audaciosas não surgiriam"
Marcelo Gleiser é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo". Artigo publicado na "Folha de SP":
Na semana passada, afirmei que tanto Kepler quanto Galileu, dois gigantes da história da ciência, fizeram muitas de suas descobertas usando instrumentos inovadores. No caso de Galileu, temos o telescópio, fora muitas técnicas experimentais que ele desenvolveu para a obtenção e análise de dados.
No caso de Kepler, foram os dados obtidos por Tycho Brahe com seus instrumentos de alta precisão (para o final do século 16) que lhe permitiram provar que as órbitas planetárias são elípticas. Queria hoje revisitar a importância dos instrumentos no avanço científico.
Existe uma visão romântica do cientista, inspirada sem dúvida por Einstein, daquele sujeito solitário que sonha o mundo em sua cabeça. Desses sonhos, e mais muita genialidade e intuição, saem ideias e teorias fantásticas, capazes de revolucionar todo o conhecimento humano. Eu digo isso pois, quando estudante, também pensava que esse era o modelo mais atraente de cientista, o gênio que desvenda o Universo em sua mente.
Na verdade, há poucos exemplos assim na história da ciência. Einstein é um deles, com certeza. Talvez seja o único deles. (E com ressalvas!) Outros, mesmo o grande Isaac Newton e, mais recentemente, Niels Bohr e Werner Heisenberg, ou mesmo Richard Feynman e Murray Gell-Mann, criaram teorias novas, sem dúvida, mas sempre seguindo inspirações vindas de experimentos ou da análise detalhada de dados. Nas outras ciências naturais - a química, a biologia, a geologia etc.-, isso é ainda mais evidente.
Quando os dados não existem, teorias ficam perdidas. Isso não significa que teóricos não devam especular.
Einstein sabia muito bem que suas teorias tinham consequências observacionais dramáticas. No caso da teoria da relatividade especial, a ausência do amado e esperado éter; no caso da relatividade geral, a curvatura do espaço e seus efeitos na propagação da luz vinda de estrelas. Teorias que não fazem previsões passíveis de teste não são incluídas no cânone científico.
Afinal, a função da ciência é explicar o mundo. E que mundo é esse? Aquele que podemos medir. Sem medidas, caímos no país do vale-tudo, e pouco de valor podemos afirmar. Ao menos de valor científico.
Como sempre, nem tudo é tão simples. Certas teorias fazem previsões que a tecnologia ainda não pode testar. A esperança, claro, é que seja uma questão de tempo e que, um dia, nossos instrumentos cheguem lá. Caso essa confiança em nossa criatividade tecnológica não existisse, teorias mais audaciosas não poderiam nem ser propostas, ou, se propostas, não seriam levadas muito a sério.
Em física de altas energias, por exemplo, uma partícula chamada Higgs foi proposta nos anos sessenta para explicar como as outras partículas da natureza, do elétron aos quarks que compõem os prótons e nêutrons, ganham suas massas. Até agora, não sabemos se o Higgs existe ou não.
Passadas décadas, experimentos mostraram que a massa do Higgs é mais alta do que o valor inicialmente esperado; caso contrário, ele já teria sido achado (se existir). Com o LHC, o novo acelerador de partículas na Europa que deverá entrar em funcionamento em alguns meses, chegamos a uma situação curiosa: a máquina tem tal potência que, ou acha o Higgs, ou prova que ele não existe.
Essa é uma situação ideal em ciência: o momento da verdade. O fato de que levou 40 anos para que nossa tecnologia chegasse a esse ponto é um argumento a favor das teorias mais audaciosas. Mas é também contra elas. Pois de audacioso o Higgs não tem nada quando comparado a outras ideias na praça, que dificilmente poderão ser testadas nas próximas décadas ou sabe-se lá quando.
(Folha de SP, 16/8)