JC e-mail 3616, de 09 de Outubro de 2008.
19. Ciência: uma religião nas escolas?, artigo de Eliane Brígida Morais Falcão
“Incluo-me entre os que se posicionam a favor da exclusão do ensino religioso nas escolas públicas; entretanto, com ensino religioso ou sem ensino religioso nas escolas públicas, as crenças religiosas estão presentes no Brasil e, portanto, no conjunto de estudantes que chegam às salas de aula”
Eliane Brígida Morais Falcão é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes). Artigo publicado em “O Globo”:
Ao transitar em certos ambientes acadêmicos, já me pareceu estar em templo religioso, onde um Deus, a Ciência, aparece reverenciado e relacionado a todo tipo de ganhos, soluções e ideais para a educação.
Nesses espaços, não se ouve referência ao indispensável entendimento de que a ciência se faz na dinâmica das relações sociais e seus resultados servem não só para a compreensão do mundo, mas também para aplicação no mundo social, no mundo concreto das necessidades e desejos humanos.
Números e exortações de estímulo à adesão ao mundo das conquistas científicas, percebido como inquestionável, envolvem esses ambientes, feito uma nuvem. Diante de tal situação, torna-se impossível escapar de uma pergunta: no lugar de dogmas religiosos, pretender-se-á disseminar “dogmas” da ciência?
No debate atual sobre o ensino religioso nas escolas públicas, com alguma freqüência, variações desse enfoque reaparecem. Com referências ao Estado laico e suas possibilidades de ensino de valores e visões de mundo, criticam-se todas as propostas de ensino religioso, visto como fonte de desavenças e conflitos com os objetivos que devem reger a educação na instituição pública. Mas não se alude às limitadas iniciativas de ensino de valores e visões de mundo laicos nas escolas.
Parece aí prevalecer a ótica religiosa da ciência acima mencionada: bastaria limpar o terreno escolar das aulas de religião e os benefícios da ciência e da educação laica apareceriam. As religiões, nesse contexto, apresentam-se como vilãs e responsabilizadas, muitas vezes, pelo limitado desempenho do ensino das ciências nas escolas. Crenças religiosas de estudantes, suas famílias e mesmo de professores parecem destinadas ao silêncio. Cala-se também a informação de que há cientistas religiosos nos quatro cantos do mundo.
Dados históricos mostram que crenças religiosas e científicas não trazem conflitos obrigatoriamente, o que se confirma pelo fato de existirem cientistas com fé religiosa no mundo secularizado de hoje. As divergências entre os dois campos surgem mais em relação às formas de abordagem de seus temas.
Tenho estudado o tema da origem da vida conforme ensinado nas escolas. Crenças religiosas aí se imiscuem, sem dúvida. Mas as dificuldades do ensino do assunto não podem ser creditadas a essas crenças. Elas se relacionam mais a outros dados como, por exemplo, o de que tal tema não é sempre considerado relevante na formação universitária de biólogos.
Dessa forma, por vezes, professores chegam às salas de aula sem terem tido o acesso necessário aos aspectos teóricos sobre a origem da vida. A isso, acrescenta-se o fato de que há livros didáticos que também não abordam o tema adequadamente. Outro dado relevante a ser considerado é que, nas salas de aula, nem sempre os professores conversam com os estudantes sobre suas posições religiosas em relação ao tema de ensino. Ignorar ou desprezar crenças religiosas dos estudantes é ignorar ou desprezar uma dimensão da experiência humana, que se manifesta de forma evidente na cultura brasileira.
Incluo-me entre os que se posicionam a favor da exclusão do ensino religioso nas escolas públicas, entretanto, com ensino religioso ou sem ensino religioso nas escolas públicas, as crenças religiosas estão presentes no Brasil e, portanto, no conjunto de estudantes que chegam às salas de aula.
Devem, por isso, ser consideradas educacionalmente de forma aberta e dinâmica no âmbito mesmo das aulas dos diferentes campos do conhecimento. Há caminhos adequados para isso, inclusive apoiados pelas conquistas da compreensão científica do comportamento humano. A defesa da escola pública laica prescinde de uma visão religiosa da ciência.
(O Globo, 24/9)