Feios, sujos e malvados
19/8/2009
Por Alex Sander Alcântara
Agência FAPESP – O determinismo biológico que norteou práticas da medicina e da criminologia na primeira metade do século 20 não é um acontecimento isolado no tempo. A conclusão está no livro Feios, sujos e malvados sob medida – A utopia médica do biodeterminismo, que acaba de ser lançado e põe em discussão a ideia de que a história dos determinismos biológicos é muito mais ampla e difusa no tempo e no espaço.
A publicação – focada na São Paulo da década de 1920 até 1945 – analisa os problemas sociais dos “feios, sujos e malvados”, ou seja, indivíduos com comportamentos considerados antissociais – os grupos mais visados eram criminosos, homossexuais, doentes mentais e mesmo operários e crianças.
De acordo com o autor do livro, Luis Ferla, professor de história contemporânea na Universidade Federal Paulista (Unifesp) em Guarulhos, a utopia médica do biodeterminismo defendia que, para melhor defesa da sociedade, os médicos deviam se lançar ao “grande projeto do conhecimento humano”. Ou, mais especificamente, ao “corpo do delinquente”, cujas particularidades “poderiam ajudar a explicar as disfunções e desequilíbrios da sociedade”.
“Ao médico cabia a tarefa de identificar corpos perigosos, para prevenir o crime antes que acontecesse. Ou seja, conhecer o criminoso antes que ele entrasse em ação. É isso que define o determinismo biológico, ou seja, a explicação da personalidade e de comportamentos a partir do corpo humano, desvalorizando condicionamentos sociais”, disse Ferla à Agência FAPESP.
Livro de professor da Unifesp analisa práticas da medicina em São Paulo na primeira metade do século 20 e destaca como as ideias biodeterministas perseguiram pessoas com comportamento considerado antissocial
O livro é resultado de pesquisa de doutorado e contou com apoio da FAPESP na modalidade Auxílio a Pesquisa – Publicações. Segundo o autor, o período estudado é o mais sintomático em relação às práticas biodeterministas. Após a 2ª Guerra Mundial, teria havido um recuo significativo dessas práticas por conta dos traumas associados à aplicação radical no regime nazista.
“Mas, desde as últimas décadas do século 20, e entrando no século 21, houve uma revivência, de forma diferente, desses ideais. O desenvolvimento extraordinário da ciência genética a partir dos anos de 1970, por exemplo, tem possibilitado uma sobrevalorização dos aspectos biológicos”, salientou Ferla.
O primeiro capítulo aborda a gênese e a recepção da criminologia biodeterminista no Brasil, a partir do surgimento da Escola Positiva de Direito Penal. Também chamada de escola italiana, moderna ou científica, a Escola Positiva surgiu e se difundiu nas últimas décadas do século 19, a partir dos trabalhos do italiano Cesare Lombroso.
Ao transformar “o crime em uma expressão patológica”, Lombroso e seus seguidores colocaram os médicos como atores centrais na nova criminologia. O olho treinado e especializado do cientista médico seria o único capaz de identificar na multidão os “indicares do desvio”.
“Daí resulta que a pena para o infrator deveria ser concebida como tratamento, e não como punição. As delegacias, prisões, penitenciárias, manicômios, institutos disciplinares deveriam se transformar em instituições terapêuticas, de caráter científico, o que implicaria, dentre outras coisas, produção de conhecimento”, disse.
Vagabundos e delinquentes
O comportamento humano problemático, segundo Ferla, englobaria não só o ato criminoso stricto sensu, mas uma definição mais ampla pautada na biologia. Ou seja, o desvio do comportamento socialmente aceito incluiria o crime, mas também o homossexualismo, principalmente ao longo dos anos 1930.
Como a “anormalidade” nem sempre era passível de ser capturada pela lei e pelo aparato prisional, o conceito de “periculosidade” se tornou a principal sustentação dos dispositivos extralegais capazes de abraçar amplos setores da população.
“Por isso, procuro demonstrar no livro que há uma analogia persistente e muito forte entre o ato criminoso e o acidente de trabalho”, acrescentou Ferla, ao contar que os loucos, alcoólatras, prostitutas, epilépticos, vagabundos, menores, homossexuais e trabalhadores urbanos eram “os grupos sociais privilegiados pelo projeto positivista”.
O docente explica, referenciado na conclusão de outros autores, que o conceito de “menor de rua” delinquente, por exemplo, é resultado das ideias fundamentadas naquele período. “É uma herança que chega até nós a partir dos preceitos biodeterministas”, apontou.
Outra plataforma institucional forte e que ajudou na difusão do biodeterminismo se concentrou na Sociedade de Medicina Legal de Criminologia de São Paulo, criada no início dos anos 1920.
“A criação da sociedade permitiu a organização dessas ideias e uma articulação da comunidade científica (médicos) com a área do direito. É importante lembrar que os juristas participavam dessa entidade, e não se tratava de uma oposição entre médicos e advogados ou médicos e juristas”, disse.
Outro ponto destacado pelo autor é a criação, em 1934, do Laboratório de Antropologia Criminal da Polícia de São Paulo, destinado a fazer exames biotipológicos, principalmente em delinquentes, “sugerindo a manipulação da pena, fazendo indicações de liberdade condicional ou influindo na vida dos sentenciados a partir dos resultados desses exames”.
Feios, sujos e malvados sob medida – A utopia médica do biodeterminismo
Autor: Luis Ferla
Edição: Alameda
Preço: R$ 62
Páginas: 427
Mais informações: www.alamedaeditorial.com.br