Sobre a importância da ciência, artigo de Marcelo Gleiser

terça-feira, outubro 19, 2010

JC e-mail 4118, de 18 de Outubro de 2010.


"Apenas uma sociedade que é versada na ciência pode escolher qual vai ser o seu destino de forma responsável"

Marcelo Gleiser é professor de física teórica no Dartmouth College (EUA). Artigo publicado na "Folha de SP":

Parece paradoxal que, no início deste milênio, durante o que chamamos com orgulho de "era da ciência", tantos ainda acreditem em profecias de fim de mundo. Quem não se lembra do bug do milênio ou da enxurrada de absurdos ditos todos os dias sobre a previsão maia de fim de mundo no ano 2012?

Existe um cinismo cada vez maior com relação à ciência, um senso de que fomos traídos, de que promessas não foram cumpridas. Afinal, lutamos para curar doenças apenas para descobrir outras novas. Criamos tecnologias que pretendem simplificar nossas vidas, mas passamos cada vez mais tempo no trabalho. Pior ainda: tem sempre tanta coisa nova e tentadora no mercado que fica impossível acompanhar o passo da tecnologia.

Os mais jovens se comunicam de modo quase que incompreensível aos mais velhos, com Facebook, Twitter e textos em celulares. Podemos ir à Lua, mas a maior parte da população continua mal nutrida.

Consumimos o planeta com um apetite insaciável, criando uma devastação ecológica sem precedentes. Isso tudo graças à ciência? Ao menos, é assim que pensam os descontentes, mas não é nada disso.

Primeiro, a ciência não promete a redenção humana. Ela simplesmente se ocupa de compreender como funciona a natureza, ela é um corpo de conhecimento sobre o Universo e seus habitantes, vivos ou não, acumulado através de um processo constante de refinamento e testes conhecido como método científico.

A prática da ciência provê um modo de interagir com o mundo, expondo a essência criativa da natureza. Disso, aprendemos que a natureza é transformação, que a vida e a morte são parte de uma cadeia de criação e destruição perpetuada por todo o cosmo, dos átomos às estrelas e à vida. Nossa existência é parte desta transformação constante da matéria, onde todo elo é igualmente importante, do que é criado ao que é destruído.

A ciência pode não oferecer a salvação eterna, mas oferece a possibilidade de vivermos livres do medo irracional do desconhecido. [Nota do Blogger: Gleiser, me desculpe, mas isso não é ciência, mas a sua subjetividade filosófica] Ao dar ao indivíduo a autonomia de pensar por si mesmo, ela oferece a liberdade da escolha informada. Ao transformar mistério em desafio, a ciência adiciona uma nova dimensão à vida, abrindo a porta para um novo tipo de espiritualidade, livre do dogmatismo das religiões organizadas.

A ciência não diz o que devemos fazer com o conhecimento que acumulamos. Essa decisão é nossa, em geral tomada pelos políticos que elegemos, ao menos numa sociedade democrática. A culpa dos usos mais nefastos da ciência deve ser dividida por toda a sociedade. Inclusive, mas não exclusivamente, pelos cientistas. Afinal, devemos culpar o inventor da pólvora pelas mortes por tiros e explosivos ao longo da história? Ou o inventor do microscópio pelas armas biológicas?

A ciência não contrariou nossas expectativas. Imagine um mundo sem antibióticos, TVs, aviões, carros. As pessoas vivendo no mato, sem os confortos tecnológicos modernos, caçando para comer. Quantos optariam por isso?

A culpa do que fazemos com o planeta é nossa, não da ciência. Apenas uma sociedade versada na ciência pode escolher o seu destino responsavelmente. Nosso futuro depende disso.

(Folha de SP, 17/10)

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NOTA DESTE BLOGGER:

O reducionismo de Gleiser é irritante. A exaltação da ciência por Gleiser beira à idolatria secularizada. Traduzindo em graúdos: cientificismo.

Ideias são perigosas e têm consequências. Mesmo as científicas. E não como pontifica Gleiser, seus autores têm sim responsabilidades morais do uso de suas ideias. Querer imputar o mau uso da ciência à toda sociedade ou então somente aos políticos é querer tirar os dos cientistas da reta.

Em que pese a conclusão de Gleiser ser brilhante - "Apenas uma sociedade versada na ciência pode escolher o seu destino responsavelmente", é preciso exercer sobre a ciência o que os ingleses e americanos chamam de checks and balances, onde limites são impostos a um grupo por outro grupo com poder de vetar as decisões ou ações do primeiro. Gleiser mora nos Estados Unidos e deve saber disso.



Por que é necessário checks and balances sobre a ciência e os cientistas? Não podemos esquecer as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Einstein foi um dos cientistas que incentivaram sua fabricação. Não esqueçamos casos mais recentes onde cientistas fizeram mau uso da ciência e deveriam ser julgados por isso. 


Remeto os leitores para alguns casos destacados por John Horgan na revista Scientific American:

1. A inoculação de sifílis em prisioneiros e doentes mentais na Guatemala:

—From 1946 to 1948, physicians funded by the National Institutes of Health deliberately infected nearly 700 Guatemalan prisoners, mental-hospital patients and soldiers with syphilis to test their responses to antibiotics. The leader of this research, John C. Cutler, was also involved in the infamous Tuskegee studies, in which scientists withheld antibiotics from black American males naturally infected with syphilis. "It's ironic—no, it's worse than that, it's appalling—that, at the same time as the United States was prosecuting Nazi doctors for crimes against humanity, the U.S. government was supporting research that placed human subjects at enormous risk," the bioethicist Mark Siegler told The New York Times.

2. A implantação de eletrodos em cérebros de doentes mentais nos Estados Unidos:

—In the 1950s and 1960s researchers at leading universities embedded electrodes in the brains of mental patients to test whether minds and bodies can be manipulated via electrical stimulation of neural tissue. In 1969 the Yale physiologist Jose Delgado (whom I profiled in Scientific American in 2005), extolled the benefits of brain implants in his book Physical Control of the Mind: Toward a Psychocivilized Society(Harper & Row, 1971). Delgado declared that brain implants could help create "a less cruel, happier and better man." In 1970 Frank Ervin and Vernon Mark, two brain-implant researchers at Harvard University with whom Delgado had collaborated, proposed in their book Violence and the Brain (HarperCollins, 1970) that brain implants and psychosurgery might quell violent crime and rioting in inner cities.

3. A receita de drogas antipsicóticas a adolescentes nos Estados Unidos, com compensação financeira polpuda para o pesquisador:

—In recent decades prescriptions of drugs for children, including infants, supposedly suffering from psychiatric illness have skyrocketed. Some 500,000 U.S. children and adolescents are now taking antipsychotic drugs, Duff Wilson reported recently in The New York Times, even though some experts believe the drugs "may pose grave risks to development of both their fast-growing brains and their bodies." In another Times article Wilson details how psychiatrists who tout the benefits of antipsychotics receive grants, vacations, meals and other gifts from drug manufacturers. The Harvard physician Joseph Biederman, whose research helped spur a 40-fold increase in diagnoses of bipolar disorders in children between 1994 and 2003, received $1.6 million, "from companies including makers of antipsychotic drugs prescribed for some children who might have bipolar disorder," according to Wilson.

Eu vejo um grave perigo desta ciência que se julga acima de todos, não presta contas a ninguém [e somos nós que pagamos os salários desses Barnabés!!!] e que Gleiser quer repartir a culpa dos seus erros com toda a sociedade. A ciência é uma coisa boa, mas também pode ser muito ruim, pois exercida por humanos, simplesmente humanos, capazes de atos de altruismo, mas também de atos genocidas e repugnantes como os acima descritos.

Gleiser, sua conclusão de "Apenas uma sociedade versada na ciência pode escolher o seu destino responsavelmente" deve ser mediada através de checks and balances, e que a ciência, pelos limites epistemológicos [a natureza se recusa dar a totalidade das respostas das coisas em si] não é um tipo de deus ex-machina até mesmo na explicação aproximada e sempre mutante da realidade.

Checks and balances, não faz mal a ninguém, baby!


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Texto completo do John Horgan, Be wary of the righteous rationalist: We should reject Sam Harris's claim that science can be a moral guidepost