Se algum abortista desejasse a verdade, teria de reconhecer que é incapaz de provar a inumanidade dos fetos e admitir que, no fundo, eles serem humanos ou não é coisa que não interfere na sua decisão de matá-los.
Olavo de Carvalho - 13/10/2010 - 20h20
O aborto só é uma questão moral porque ninguém conseguiu provar, com certeza absoluta, que um feto é mera extensão do corpo da mãe ou um ser humano de pleno direito.
A existência da discussão interminável mostra que os argumentos de parte a parte soam inconvincentes a quem os ouve, se não também a quem os emite.
Existe aí portanto uma dúvida legítima, que nenhuma resposta pode aplacar. Transposta ao plano das decisões práticas, essa dúvida transforma-se na escolha entre proibir ou autorizar um ato que tem 50% de chances de ser uma inocente operação cirúrgica como qualquer outra ou, em vez disso, um homicídio premeditado. Nessas condições, a única opção moralmente justificada é, abster-se de praticá-lo.
À luz da razão, nenhum ser humano pode arrogar-se o direito de cometer livremente um ato que ele próprio não sabe dizer, com segurança, se é ou não um homicídio. Mais ainda: entre a prudência que evita correr o risco desse homicídio e a afoiteza que se apressa em cometê-lo em nome de tais ou quais benefícios sociais hipotéticos, o ônus da prova cabe aos defensores da segunda alternativa.
Jamais tendo havido um abortista capaz de provar com razões cabais a inumanidade dos fetos, seus adversários têm todo o direito, e até o dever, de exigir que ele se abstenha de praticar uma ação cuja inocência é matéria de incerteza até para ele próprio. Se esse argumento é evidente por si mesmo, é também manifesto que a quase totalidade dos abortistas hoje em dia não logra perceber o seu alcance, pela razão de que a opção pelo aborto supõe a incapacidade ou, em certos casos, a má vontade criminosa de apreender a noção de "espécie".
Espécie é um conjunto de traços comuns, inatos e inseparáveis, cuja presença enquadra um indivíduo, de uma vez para sempre, numa natureza que ele compartilha com outros tantos indivíduos. Pertencem à mesma espécie, eternamente, até mesmo os seus membros ainda não nascidos, inclusive os não gerados, que quando gerados e nascidos vierem a portar os mesmos traços comuns. Não é difícil compreender que os gatos do século 23, quando nascerem, serão gatos e não tomates.
A opção pelo abortismo exige, como condição prévia, a incapacidade ou recusa de apreender essa noção. Para o abortista, a condição de "ser humano" não é qualidade inata definidora dos membros da espécie, mas uma convenção que os já nascidos podem, a seu talante, aplicar ou deixar de aplicar aos que ainda não nasceram. Quem decide se o feto em gestação pertence ou não à humanidade é um consenso social, não a natureza das coisas.
O grau de confusão mental necessário para acreditar nessa idéia não é pequeno. Tanto que raramente os abortistas alegam de maneira clara e explícita essa premissa fundante dos seus argumentos. Em geral mantêm-na oculta, entre névoas (até para si próprios), porque pressentem que enunciá-la em voz alta seria desmascará-la, no ato, como presunção antropológica sem qualquer fundamento possível e, aliás, de aplicação catastrófica: se a condição de ser humano é uma convenção social, nada impede que uma convenção posterior a revogue, negando a humanidade de retardados mentais, de aleijados, de homossexuais, de negros, de judeus, de ciganos ou de quem quer que, segundo os caprichos do momento, pareça inconveniente.
Com toda a clareza que se poderia exigir, a opção pelo abortismo repousa no apelo irracional à inexistente autoridade de conferir ou negar, a quem bem se entenda, o estatuto de ser humano, de bicho, de coisa ou de pedaço de coisa.
Não espanta que pessoas capazes de tamanho barbarismo mental sejam também imunes a outras imposições da consciência moral comum, como o dever que um político tem de prestar contas dos compromissos assumidos por ele ou por seu partido.
É com insensibilidade moral verdadeiramente sociopática que o sr. Lula da Silva e sua querida Dona Dilma, após terem subscrito o programa de um partido que ama o aborto ao ponto de expulsar quem se oponha à idéia, saem ostentando inocência de cumplicidade com a proposta abortista.
Seria tolice esperar coerência moral de indivíduos que não respeitam nem o compromisso de reconhecer que as demais pessoas humanas pertencem à mesma espécie deles por natureza e não por uma generosa – e altamente revogável – concessão da sua parte.
Também não é de espantar que, na ânsia de impor sua vontade de poder, mintam como demônios. Vejam os números de mulheres supostamente vítimas anuais do aborto ilegal, que eles alegam para enaltecer as virtudes sociais do aborto legalizado. Eram milhões, baixaram para milhares e depois viraram centenas. Agora parece que fecharam negócio em 180, quando o próprio SUS já admitiu que não passam de oito ou nove. É claro: se você não apreende ou não respeita nem mesmo a distinção entre espécies, como não seria indiferente à exatidão das quantidades?
Aristóteles aconselhava evitar o debate com adversários incapazes de reconhecer ou de obedecer as regras elementares da busca da verdade. Se algum abortista desejasse a verdade, teria de reconhecer que é incapaz de provar a inumanidade dos fetos e admitir que, no fundo, eles serem humanos ou não é coisa que não interfere na sua decisão de matá-los. Mas confessar isso seria exibir um crachá de sociopata. E sociopatas, por definição e fatalidade intrínseca, vivem de parecer que não o são.
Olavo de Carvalho é ensaísta, jornalista e professor de Filosofia
Fonte: Diário do Comércio