Novo estudo diz que primeiros americanos se pareciam com africanos e amplia polêmica sobre chegada do homem ao continente
Marcos Pivetta
Edição Impressa 182 - Abril de 2011
Crânios de Lagoa Santa: americanos com traços africanos
@ Eduardo Cesar
O Homo sapiens não teria se diferenciado em raças ou tipos físicos distintos antes de se estabelecer em todos os continentes, inclusive nas Américas, o último grande bloco de terra, com exceção da gélida Antártida, conquistado pela espécie. A leva inicial de caçadores-coletores que aqui entrou, há mais de 15 mil anos, vinda da Ásia por um caminho hoje ocupado pelo estreito de Bering, teria uma estrutura anatômica muito similar à da primeira população de humanos modernos emigrada da África, entre 70 mil e 55 mil anos atrás. Depois de deixar o berço da humanidade, o homem penetrou na Ásia, que primeiramente serviu de base para a conquista de outros dois pontos importantes do globo, a Europa e a Austrália, e mais tarde de um terceiro, as Américas. “Até uns 10 mil anos atrás, todos osHomo sapiens presentes em qualquer continente tinham uma morfologia craniana de padrão africano”, diz o bioantropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo (USP). “O processo de raciação ainda não havia começado.” O surgimento de tipos físicos, como os caucasianos ou os mongoloides (asiáticos de olhos puxados e face plana), seria um fenômeno biológico muito recente e teria ocorrido apenas depois de o homem ter se espalhado por praticamente toda a Terra.
O pesquisador defende essa hipótese, polêmica, num artigo científico publicado na edição de março do American Journal of Physical Anthropology. No trabalho, Neves e outros dois antropólogos físicos – o brasileiro Mark Hubbe, que trabalha no Instituto de Investigação Arqueológica e Museu da Universidade Católica do Norte, no Chile, e a grega Katerina Harvati, da Universidade de Tübingen, na Alemanha – comparam 24 características anatômicas presentes nos crânios de seres humanos que viveram entre 10 mil e 40 mil anos atrás na América do Sul, Europa e leste da Ásia e de indivíduos da época atual oriundos dessas três regiões, além da África Subsaariana, Oceania e Polinésia. Ao todo, foram confrontados 48 esqueletos antigos (32 da América do Sul, 2 da Ásia e 14 da Europa) e 2 mil atuais. “Independentemente da origem geográfica, os membros das populações antigas se assemelham mais a seus contemporâneos do passado do que aos humanos de hoje”, comenta Hubbe. Em outras palavras, os traços físicos do homem que abandonou a África e, 40 mil anos mais tarde, desbravou as Américas eram praticamente os mesmos. De acordo com essa visão, a conquista do mundo foi um fenômeno tão rápido – o Homo sapiens teria usado rotas costeiras, menos difíceis de serem vencidas – que não deu tempo para o homem desenvolver de imediato adaptações físicas aos novos ambientes.
Os resultados do estudo amparam o modelo de povoamento de nosso continente defendido há mais de duas décadas por Neves, cujos trabalhos são financiados em grande parte pela FAPESP. Segundo essa hipótese, as Américas foram colonizadas por duas ondas migratórias promovidas por povos distintos que cruzaram em momentos diferentes o estreito de Bering. A primeira teria sido composta por humanos que, há uns 15 mil anos, ainda exibiam essa morfologia “pan-africana”, para usar um termo empregado pelo pesquisador da USP. Os membros desse bando inicial de caçadores-coletores deveriam ser parecidos com Luzia, o famoso crânio feminino de 11 mil anos resgatado na região mineira de Lagoa Santa. Tinham nariz e órbitas oculares largos, face projetada para a frente e cabeça estreita e alongada. Embora seja impossível determinar com certeza a cor de sua pele, eram provavelmente negros. Todos os seus descendentes desapareceram misteriosamente em algum ponto da Pré-história por motivos ignorados e não deixaram representantes entre as tribos hoje presentes no continente.
Os humanos com traços africanos foram, sempre de acordo com as ideias de Neves, majoritariamente substituídos por indivíduos que vieram em um segundo movimento migratório da Ásia para as Américas. O novo grupo teria entrado no Novo Mundo mais recentemente, entre 9 mil e 10 mil anos atrás, e incluiria apenas indivíduos com características físicas dos chamados povos mongoloides, como os atuais orientais e as tribos indígenas encontradas até hoje em nosso continente. Seres humanos com essa aparência mais asiática, surgida possivelmente como uma adaptação ao clima extremamente frio da Sibéria e eventualmente do Ártico, não podem ter participado da primeira leva migratória para as Américas simplesmente porque esse tipo físico ainda não havia surgido na Terra. Pelo menos é o que dizem Neves, Hubbe e Harvati.
Essa teoria sobre o povoamento das Américas está longe de ser consensual. Análises do DNA extraído de populações extintas e vivas de indígenas do continente, em especial das sequências contidas nos genomas da mitocôndria (de linhagem materna) e do cromosomo Y (herdado do pai), contam uma história distinta. Favorecem a hipótese de que houve apenas um movimento de entrada de indivíduos da Ásia em direção ao Novo Mundo e de que essa travessia ocorreu alguns milhares de anos antes do sugerido pelas evidências arqueológicas. “Praticamente toda a diversidade biológica dos atuais tipos humanos já estava presente na única leva migratória que entrou nas Américas”, diz o geneticista Sandro Bonatto, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “Apenas os esquimós, população que representa o caso mais extremo e tardio da chamada morfologia mongoloide, ainda não tinham se originado e não participaram dessa leva.”
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