Este blogger não ia mais abordar o oba-oba que a Grande Mídia Internacional e Tupiniquim vêm fazendo em relação ao fóssil de Australopithecus (macaco do sul) encontrado há mais de 5 anos na Etiópia, mas depois do que vi de jornalismo científico em nossa maior revista semanal, a VEJA (Edição 1975, # 38, de 27/09/2006, p. 94), eu não pude me segurar e criticar o texto "A menina que subia em árvores" [acesso para assinantes, infelizmente], de Leoleli Camargo.
Será que o fóssil de "criança" ajuda mesmo a entender a transição entre o símio e o homem? Antes de entrarmos nos aspectos científicos, uma nota esclarecedora: nós aprendemos na escola que filhote de macaco é chamado de macaquinho, nunca de criança. Vai ver, o estado deplorável e emburrecedor de nossa educação devem ter contribuído para o 'erro intencional' no título – Australopithecus significa 'macaco do sul', logo o título correto seria 'A macaquinha que subia em árvore'.
Ah, agora eu entendi o porquê de 'criança' no título – é que macaco sobe em árvore e um título assim não seria 'apelativo' e nem venderia bananas, oops, revistas. É preciso chocar os leitores. E a objetividade do jornalismo científico onde é que fica? Bem, a objetividade do jornalismo científico, às bananas com isso, oops, às favas com a objetividade jornalística!
Os jornalistas científicos têm o dever de informar aos leigos não especialistas que a paleoantropologia é uma ciência fortemente influenciada pela subjetividade humana. É uma ciência que demanda boa dose de ceticismo localizado. Há muita coisa em jogo – prestígio acadêmico, egos inchados, inveja, desonestidade acadêmica no relato das pesquisas, e otras cositas mais.
Já pensou o Enézio descobrindo esse tal de 'elo perdido' justamente do 'período ainda pouco conhecido da evolução' onde 'os ancestrais do homem perdiam os últimos traços herdados dos macacos'? Leoleli, os ossos encontrados na Etiópia não são de uma 'menina', mas de uma macaquinha do sul que viveu há mais de 3 milhões de anos e morreu afogada e soterrada.
Além disso, ainda existem outras partes do fóssil que ainda não foram removidas do local, e isso deve levar mais anos. O sexo do fóssil foi determinado pela morfologia dentária.
É impressionante como funciona a subjetividade humana na reconstituição artística do 'provável rosto' de Selam (Paz em idioma local da Etiópia), mas as 'pernas de gente' e as 'mãos de chimpanzé' é forçar um pouco demais a barra paleoantropológica, pois foram justamente as pernas e os pés os ossos mais danificados do fóssil.
Lucy, o fóssil de Australopithecus afarensis descoberto em 1974, nosso suposto ancestral direto do homem moderno, não é considerado pelos especialistas como tendo 'andado ereto'. Daí o 'estardalhaço' de VEJA e da National Geographic, sobre a possibilidade dessa 'macaquinha do sul' ter andado ereta e de vez quando se balançar nos galhos das árvores. Ora, cada macaco no seu galho – macaco se balança mesmo em galhos de árvores, e nós não precisamos de Darwin para nos dizer isso.
Durma-se com um barulho desses – é impressionante que tão-somente com um pé e uma rótula 'tão pequena quanto uma ervilha seca', o paleontólogo etíope Zeresenay Alemseged, do Instituto Max Planck da Alemanha, chefe da equipe que descobriu Selam, e demais pesquisadores puderam afirmar 'cientificamente' que o 'bebê de Lucy' andava ereto...
Apesar de terem encontrado um fóssil em excelente estado de conservação, os autores da pesquisa destacaram que diversas partes do esqueleto estavam distorcidas durante o processo de soterramento.
É interessante notar que o artigo científico é menos dogmático do que o que tem sido publicado a respeito deste achado. Os autores somente afirmam que este esqueleto se parece com Lucy, e dão uma idade aproximada para a 'criança', oops, macaquinha.
Além disso, os autores reconhecem que as interpretações dos hábitos de vida baseadas tão-somente nos ossos não é ciência qua ciência:
"Agora que a escápula desta espécie pode ser examinada completamente pela primeira vez, é inesperado encontrar as mais fortes semelhanças com gorila, um animal no qual o suportar de peso e o andar terrestre sobre as juntas das mãos caracteriza predominantemente o uso locomotor dos membros superiores. Problemático na interpretação dessas descobertas é que a diversidade da arquitetura da escápula entre as espécies hominóides é mal compreendida do ponto de vista funcional". [1]
A 'criança', oops, a macaquinha aparentemente foi soterrada abruptamente numa enchente junto com muitos animais:
"Este cenário deposicional, combinado com uma preservação impressionante de muitos restos de fauna articulados com falta de evidência de exposição às intempéries antes de ser enterrada, mais provavelmente indica que a jovem hominídea foi enterrada com um corpo intacto pouco após a sua morte durante um grande evento de inundação". [2]
Na vizinhança onde o fóssil foi encontrado, os pesquisadores também encontraram ossos de bagres, ratos, macacos, babuínos, mangustos, elefantes, cavalos extintos, rinocerontes, hipopótamos, porcos, girafas, antílopes, impalas, gazelas, crocodilos, cobras corais, tartarugas, e outros animais...
Naquela edição da Nature, Bernard Wood chamou ao 'bebê' de Lucy de “uma coisa pequena muito preciosa". Wood concorda que “o corpo da infante foi enterrado mais ou menos intacto, e o sedimento nas águas da inundação deve tê-la coberto rapidamente".
E quanto à capacidade desta espécie andar ereta, o que disse Wood?
"Ainda continua uma grande controvérsia quanto à postura e a locomoção do A. afarensis. A maioria dos pesquisadores aceita que ela poderia ficar de pé e andar nos dois pés, mas se podia subir e se mover através das árvores ainda continua questionável. Alguns sugerem que as suas adaptações para andar sobre os dois pés impediria qualquer locomoção arborícola significante, e interpretar quaisquer características de membros que apóiem este tipo de locomoção como bagagem evolutiva sem qualquer função útil. Outros sugerem que uma morfologia primitiva de membros não teria persistido a menos que servisse a um propósito". [3]
Ao contrário do oba-oba que vimos na Fapesp, no JC E-Mail [1] e [2], no CiênciaHoje no Jornal Nacional (da Globo), no Jornal da Band, nesta VEJA, Wood deixa qualquer compreensão científica deste achado para o futuro:
"Quaisquer que sejam as respostas para tais questões [que este fóssil abre], a infante de Dikika tem o potencial de fornecer uma riqueza de informação sobre o crescimento e o desenvolvimento, função e taxonomia do A. afarensis".
Longe do consenso acadêmico sobre o achado fóssil apresentado pela nossa Grande Mídia Tupiniquim, Wood declarou à Associated Press [algum jornal importante ainda usa este serviço de notícias???] que este achado não vai acabar o debate entre os cientistas e que 'o Oriente Médio parece um piquenique' diante disso.
É VEJA, a suposta árvore filogenética macaco-antropóide/homem é realmente baseada mais em suposição do que em evidência. E VEJA continua "VESGA" em jornalismo científico!
NOTAS:
[1] Alemseged et al., “A juvenile early hominin skeleton from Dikika, Ethiopia,” Nature 443, 296-301(21 September 2006) | doi:10.1038/nature05047; Received 22 April 2006; Accepted 6 July 2006.
[2] Wynn et al., “Geological and palaeontological context of a Pliocene juvenile hominin at Dikika, Ethiopia,” Nature 443, 332-336(21 September 2006) |
doi:10.1038/nature05048; Received 24 April 2006; Accepted 6 July 2006.
[3] Wood, Bernard, “Palaeoanthropology: A precious little bundle,” Nature 278-281(21 September 2006) | doi:10.1038/443278a; Published online 20 September 2006.