Peculato científico e tecnológico?

quarta-feira, setembro 16, 2009

JC e-mail 3849, de 16 de Setembro de 2009.

18. Peculato científico e tecnológico?, artigo de Edinaldo Nelson dos Santos-Silva

"Esquecemo-nos de que a origem do dinheiro é pública, da parcela de imposto de todos os assalariados e não-assalariados do país"

Edinaldo Nelson dos Santos-Silva é pesquisador do Laboratório de Plâncton, CPBA/Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Artigo publicado no blog "Democracia e Transparência em C&T" e enviado pelo autor ao "JC e-mail":

No Brasil, praticamos a cultura de que a coisa pública tem duração efêmera, condicionada à crença prática amplamente difundida, em toda a sociedade, tanto nos níveis socioeconômicos ditos mais altos quanto nos mais baixos, de que o público só é público até o momento em que alguém corra e se aproprie dele, tornando-o assim, a partir deste momento, privado, apesar da propriedade de fato e de direito ser pública.

Tal cultura existe e temos provas diárias dela até mesmo nas instituições que deveriam ser o símbolo do zelo com a coisa pública - as casas do poder legislativo nacional. Isto para citar apenas um exemplo em moda. Estas casas estão "privatizadas" desde sua composição, resultado das campanhas eleitorais pesadamente financiadas não pelo bem da nação, mas pelos interesses particulares e corporativos destas casas "privadas", que cobram os dividendos ao terem seus prepostos eleitos.

Portanto, o Congresso Nacional - Senado e Câmara - age movido e pressionado muito, mas muito mesmo, pelos interesses privados, quer dos próprios congressistas ou dos seus financiadores, quando deveria agir pelos interesses dos seus eleitores e do bem público.

Esta situação, que nos levará para o abismo do suicídio coletivo, em que todos se engalfinham para reivindicar sua fatia do butim em que foi transformada a coisa pública, pode ser vista em todos os setores da nossa sociedade. Esta é a "ética" que move a sociedade brasileira atual. Causas e condicionantes que levaram a isto são um campo aberto para a pesquisa e estudo. No entanto, é preciso ter coragem para divulgar os resultados de maneira clara e, sobretudo, de forma honesta.

Na área de ciência e tecnologia, exercida por uma parcela desta mesma sociedade, muito embora seus membros queiram fazer crer que eles são diferentes, que têm outro tipo de comportamento, muitas vezes acima do bem e do mal, invocando a neutralidade da ciência, a prática é a mesma. Na realidade, não somos anjos. Somos pessoas desta mesma sociedade, impregnados destes mesmos valores que nos levam para o abismo.

Esta cultura, de corrida à coisa pública para torná-la privada, é, de fato, corrente entre esta parcela da sociedade nacional. Será que quando conseguimos financiamento para montar laboratórios, comprar equipamentos dos "nossos sonhos" ou necessidades, e trancamos a porta dos laboratórios e negamos aos colegas a possibilidade de usarem estes equipamentos, invocando o fato de que foram comprados com o dinheiro do "meu projeto", da "minha bolsa", do "meu auxílio", não estamos, na prática, fazendo a mesma coisa? Esquecemo-nos de que a origem do dinheiro é pública, da parcela de imposto de todos os assalariados e não-assalariados do país.

Há ainda uma outra questão, que chamo de privatização (indevida?) do conhecimento e das informações científicas e tecnológicas. Vejamos o que seria isto. Existem dados, alguns oficiais, que mostram que quem financia a pesquisa científica e tecnológica no Brasil é o dinheiro público. Ou seja, quem paga o salário do pesquisador é o dinheiro público, porque as instituições de pesquisa são públicas. Quem financia o laboratório do pesquisador e sua pesquisa científica é o dinheiro público. Quem financia suas viagens, suas participações em congressos, seus mestrados, doutorados e pós-doutorado é o dinheiro público. O resultado das pesquisas não deveria ser, portanto, público? De acesso livre e do conhecimento de todos?

No entanto, o que acontece na prática? Tanto o sistema oficial federal de Ciência e Tecnologia, representado pelos ministérios da área e suas agências, como os sistemas estaduais, que também vivem e sobrevivem do dinheiro público, como os próprios pesquisadores do alto dos comitês de avaliação das diversas áreas de pesquisa cultuam a crença de que devemos publicar estes resultados de nossas pesquisas, financiadas integralmente com dinheiro público, em revistas de "alto impacto" ou, em sua versão nacional, "Qualis A".

Mas onde estão as revistas de mais alto impacto? Quem as publica? Entre os anos de 2000 e 2006, as revistas que ocuparam o ranking das dez primeiras, pelo critério de "impacto", são todas de fora do Brasil, grande parte publicadas pelas grandes corporações editoriais, ou seja, são, em grande parte, privadas. Em algumas delas, paga-se para publicar e depois compramos orgulhosos o que nelas é publicado, pagando altos preços.

No processo de publicação, assinamos papéis onde abrimos mão do direito de propriedade, que a rigor não era nosso, mas público. Ou seja, transferimos indevidamente a propriedade destas informações de pesquisa para grandes corporações privadas, cujo negócio altamente lucrativo é exatamente vender estas informações, informações estas que, para as produzir, as corporações privadas não colocaram um centavo sequer.

Mesmo o consagrado (mas controverso) processo de avaliação dos artigos submetidos para publicação nestas revistas, que é feito pelos "pares", é gratuito para estas grandes corporações. O tempo gasto pelos pesquisadores para avaliar os artigos é pago com dinheiro público. Talvez este seja um dos exemplos, dentre tantos, onde o dinheiro público financia integramente o lucro de grandes corporações.

Temos, assim, toda a cadeia de produção e publicação das informações das pesquisas financiada com dinheiro público. Mas, no final da cadeia, abrimos mão da propriedade pública sobre estas informações, assinando, legalmente, papéis. Até mesmo quando precisamos usar estas informações (textos, figuras, etc) em publicações futuras, precisamos, legalmente, ter a autorização destas corporações.

Será que, no direito brasileiro, este ato não se configura em crime? Como tipificamos o ato de "transferir" para terceiros, indevidamente, a propriedade de um bem financiado, comprado com dinheiro público? Será que não estamos cometendo um peculato científico e tecnológico? Isto não é crime?

Mesmo que não seja crime, parece-me imoral e eticamente inadequado. Penso que não podemos continuar com essa prática e, ainda, nos orgulhar dela, o que é pior!

Será que já não é chegado o momento das agências de financiamento públicas, quer federais ou estaduais, colocarem uma cláusula "pétrea" nos seus editais de fomento à pesquisa deixando claro que as informações de pesquisa devem ser divulgadas em revistas que lhes permitam o acesso público e aberto? Hoje em dia, ao contrário, existem até mesmo editais específicos de apoio à publicação de revistas que sequer exigem isto.

Será que não seria mais interessante e produtivo apoiarem-se, mais fortemente, iniciativas como o SciELO, que proporciona o acesso livre e aberto aos conteúdos das revistas em seu portal? Não seria mais interessante, para o país e para os pesquisadores do Brasil, se todos contribuíssem para fortalecer as publicações nacionais ou aquelas que tivessem acesso aberto e irrestrito aos artigos publicados?