Unicamp quer vida sintética capaz de produzir plásticos

terça-feira, maio 25, 2010

JC e-mail 4016, de 24 de Maio de 2010.

21. Unicamp quer vida sintética capaz de produzir plásticos

Cientistas forjam parceria com empresa para projetar versão "verde" de matérias-primas das petroquímicas

Não é difícil resumir a missão das formas de vida que estão sendo projetadas por Gonçalo Pereira e seus colegas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). O lema é transformar o petróleo em coisa do passado.

"Vocês devem ter queimado uns dez dinossauros só para chegar aqui", brincou Pereira com a equipe de reportagem vinda de São Paulo, referindo-se ao uso de combustíveis fósseis -feitos à base de criaturas mortas há milhões de anos.

A dependência energética em relação à gasolina e ao diesel está levando o planeta para o buraco com a mudança climática, lembra ele, mas há outros usos do petróleo que a civilização do século 21 não consegue dispensar. Plásticos, por exemplo.

A não ser que os velhos micróbios que, por exemplo, já fazem etanol para mover carros aprendam truques novos.

Um dos planos da equipe é "ensinar" micro-organismos ou plantas a fabricar a unidade básica do polipropileno, molécula que é a base de embalagens plásticas, peças de automóveis e outros produtos.

Reforma da natureza

O objetivo da equipe é compartilhado com outros cientistas da área da biologia sintética, campo que prevê a criação de organismos para usos industriais, médicos ou agrícolas, por exemplo.

O objetivo de Pereira e companhia é um pouco mais modesto do que criar uma espécie nova do zero.

Sem necessariamente montar um genoma ou uma célula completa, a ideia é combinar diversos genes que nunca caminham juntos na natureza para fazer com que o micróbio (ou planta) produza algo que nenhum ser vivo gerou até hoje: o propeno.

Com gagueira

O propeno é uma molécula com três átomos de carbono e seis de hidrogênio. Ele é uma "letra" com a qual se constrói uma "palavra" química: o polipropileno.

A palavra seria uma "gagueira", formada por várias unidades de propeno, repetidas e grudadas. Os químicos chamam essa "gagueira" de polímero -um plástico.

A tarefa da indústria ficaria resumida a "colar" os propenos para montar o plástico. "A gente quer que esse organismo sintético coma açúcar e produza propeno", resume o pesquisador.

A indústria parece ter se interessado pelo desafio. A petroquímica Braskem, por exemplo, está investindo R$ 4,5 milhões no laboratório de Pereira entre 2009 e 2012.

O desafio de fazer a vida produzir algo que só pode ser extraído de combustíveis fósseis não intimida o cientista.

"A gente sabe que uma proteína [cujo código está contido no DNA] tem regiões mais ou menos independentes, com funções específicas, os chamados domínios. A gente consegue construir uma proteína nova, combinando domínios, que faça uma coisa que a natureza não fez", afirma ele.

Essa proteína poderia, por exemplo, picotar moléculas orgânicas até que elas virem o desejado propeno.

Grupo já depositou três pedidos de patente

A cena é meio comédia, meio teoria da conspiração. A cada dez minutos de conversa, Pereira se desculpa e pede para desligar o gravador. Ainda não está autorizado a divulgar a informação a seguir. Segredo industrial.

A precaução pode soar exagerada, mas o fato é que o grupo da Unicamp já requisitou três patentes internacionais e duas nacionais sobre as descobertas que fez. A ideia deter a propriedade intelectual do achado quando (e se) ele virar produto.

As patentes são compartilhadas com a petroquímica Braskem e com a ETH Bioenergia. Outra parceira é a fabricante de papel International Paper. Funcionários das empresas, como Antonio Morschbacker, gerente de tecnologia de polímeros verdes da Braskem, dividem o laboratório da Unicamp com doutorandos e mestrandos.

Pouco a pouco

Morschbacker conta que a Braskem já pode produzir em larga escala o chamado polietileno verde, outro plástico muito usado pela indústria, com base em etanol feito pelas tradicionais leveduras.

"Não é preciso que elas produzam diretamente o etileno. Nós pegamos o etanol e o transformamos quimicamente. Ainda há muito a avançar nessa área com medidas mais simples", diz ele.

Até hoje nenhuma empresa brasileira conseguiu criar produtos de engenharia genética de sucesso, mas Pereira aposta que o caso da biologia sintética é diferente.

"Se fosse para produzir novos medicamentos, eu concordo que seria difícil. Aqui nós não temos grandes empresas farmacêuticas capazes de comprar as pequenas empresas onde as ideias dessa área começam", afirma.

"Mas a biologia sintética vai nos permitir produzir commodities -produtos de baixo preço em grandes quantidades. E ninguém ainda descobriu como fazer isso. Nesse ponto, todo mundo está começando igual."

O pesquisador cita outras vantagens: solo, calor e clima para produzir a "comida" dos organismos artificiais (como caldo de cana); e a própria riqueza da biodiversidade brasileira. "Acabamos de sequenciar ["ler'] o DNA de uma bactéria nativa que pode ser fantástica para fazer etanol, mas ainda não posso dizer qual é."

"Produzir vida do zero é desnecessário"

Para cientista da Unicamp, anúncio da criação do primeiro organismo sintético nos EUA teve muito marketing

O geneticista americano Craig Venter causou estardalhaço, na última quinta-feira, ao apresentar o que pode ser considerada a primeira célula sintética de bactéria. "É uma notícia ótima para impressionar investidor", brinca Gonçalo Pereira, da Unicamp, sobre o trabalho.

"Mas não é criação de vida, e há muito marketing aí", afirma Pereira. "O DNA foi introduzido em uma "sopa" pré-formada ["cascas" de bactérias, despidas de seu DNA]. Essa sopa é que é difícil de construir sinteticamente."

O que gente como Pereira chama de biologia sintética não é montar um organismo a partir do zero com matérias-primas nunca vistas antes. O objetivo, mais modesto, é recombinar de formas criativas os materiais que já existem nos seres vivos.

Tome isto, Venter!

Uma das críticas feitas à abordagem de Craig Venter e de sua empresa, a Synthetic Genomics, é justamente esta: a abordagem tradicional, de ensinar truques novos a micróbios velhos, tem avançado bastante e pode dar mais resultado do que a criação de micróbios novos.

"No fundo, o que você quer é tirar a vontade própria desse organismo", explica o pesquisador da Unicamp.

Isso é obtido por meio da transgenia, a boa e já velha inserção de genes novos em organismos. Mas uma transgenia especial: em vez de um gene estranho, são inseridos dezenas, para mudar não apenas um produto (uma proteína, por exemplo), mas para alterar a própria função daquele organismo.

Com a nova tecnologia, a criatura vira uma máquina a serviço de seus mestres humanos. "Essa talvez seja a melhor definição de vida sintética", continua Pereira.

Na busca por um sistema biológico produtor de plástico, a equipe da Unicamp está tentando manter as opções abertas. Há três tipos de organismos candidatos: leveduras, bactérias e plantas.

Barzinho X Empresa

Os desafios de fazer biológica sintética com cada uma dessas "plataformas", como o cientista as chama, é diferente. "O microrganismo é como um dono de barzinho, que tem de fazer tudo, de servir as bebidas a receber no caixa. Ele se vira, embora não faça nada disso bem."

Já o organismo de muitas células é uma empresa multinacional, compara: altamente eficiente, com muitas partes especializadas. "É mais difícil mexer em organismos multicelulares, mais coisas podem dar errado", afirma.

A chave para o sucesso, diz o cientista, é saber combinar os melhores genes com o melhor reator, ou seja, o organismo mais propício a gerar o produto codificado nos genes em grande quantidade e com baixo custo. "A biodiversidade brasileira pode nos dar esses biorreatores."

Até agora, as tentativas de fazer plástico bacteriano tomaram justamente partido desse princípio. "Algumas bactérias já produzem plástico. Um exemplo é o PHB, ou polihidroxibutirato", diz.

"Uma empresa chamada Metabolix pegou os genes do PHB e jogou numa outra bactéria, que é boa de ser produzida na indústria", conta, mostrando uma caneta feita com PHB. O problema é que o PHB é instável. "Se eu deixar com você, daqui a um ano você vai ver o que acontece."

Converter alga em petróleo é outro objetivo

"O que é o pré-sal? São microalgas que foram acumulando gordura, calcificando e indo para o fundo do mar", compara Pereira.

Além de ensinar leveduras ou bactérias a produzir plástico, outro desafio abraçado pela equipe da Unicamp é fazer com que algas também virem fonte de combustível -sem ter de esperar os milhões de anos de formação do pré-sal.

Opções abertas

Em laboratório, os cientistas estão trabalhando com diversas espécies de algas unicelulares, em busca da melhor combinação entre produção de gordura e eficiência de crescimento, entre outros fatores.

"O potencial desse óleo é fantástico", diz Pereira. Caso o milho fosse usado como fonte de biodiesel, só os EUA precisariam cultivar oito vezes a área de seu território para suprir todas as suas necessidades. Com algas, em tese, apenas 1% do território americano seria suficiente, explica ele.

O problema é tornar as microalgas menos temperamentais. "Hoje o processo demora uma eternidade. Se você bota um pouco de açúcar, aquilo contamina, vem outro "bicho". Provavelmente vai ser preciso mudar de plataforma [ou seja, de organismo produtor]", diz.

Já habituados a lidar com etanol, os pesquisadores também estão investigando maneiras de aumentar a eficiência de produção desse álcool, estudando como os cupins modificam a celulose das plantas que utilizam em seus ninhos.

(Reinaldo José Lopes)

(Folha de SP, 23/5)

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