22. A humanidade agradecerá ao criador da vida sintética, artigo de Ken MacLeod
"A humanidade vem tentando assumir o papel de Deus com animais e plantas desde a invenção da agricultura"
Ken MacLeod é escritor de ficção científica. Artigo publicado em "O Estado de SP":
É um desses acontecimentos - como a clonagem da ovelha Dolly - que muda tudo e nada. Pela primeira vez temos um organismo em que o genoma não vem de duplicação direta, mas da descrição do genoma de outro organismo armazenado num computador - e ligeiramente modificado, para incluir uma marca d"água distinta, que pode muito bem ser uma marca registrada. É um momento importante na evolução.
E há algo que confirma o materialismo mecanicista na criação de um genoma a partir de moléculas quimicamente sintetizadas, esse genoma gerindo uma célula, essa célula se duplicando a tal ponto que não existirá um traço do citoplasma da célula original em seus descendentes. E isso enterra o fantasma do vitalismo, doutrina tacanha que diz existir uma essência de vida que não é capturada pela bioquímica "reducionista".
Na adolescência, contrai o vírus do vitalismo lendo O Fantasma da Máquina, de Arthur Koestler- mas fui curado, ironicamente, por um tratado criacionista que exaltava a complexidade da máquina celular: complexa e maravilhosa demais, pensei, para a vida precisar de outra explicação. Essa minúscula máquina não precisava nem mesmo de um minúsculo fantasma.
A vida sintética, assim, não cria problemas nem para os criacionistas (afinal, foi inteligentemente desenhada), sem citar outros teístas sofisticados. O que não irá, naturalmente, nos poupar dos costumeiros desfiles na TV de clérigos chamados para comentar a respeito - embora, desta vez, eles possam achar mais fácil dar respostas menos estúpidas que as perguntas.
Mais importantes que os clérigos são seus sucessores seculares, os "eticistas", pagos para se preocupar com coisas inúteis. Eles já analisam o caso. Alguns evocam um cenário no qual os organismos sintéticos, para os quais não há "resistência natural", perderão o controle. O que parece inconcebível. Diariamente, a biosfera oferece resistência natural a qualquer organismo novo.
Se não forem deliberadamente projetados para sobreviver, os organismos sintéticos que forem liberados servirão imediatamente de almoço de outro organismo. E aí vem a objeção contra "assumir o papel de Deus". O professor Julian Savulescu, de Oxford, fala sombriamente sobre "criar vida artificial que nunca poderia ter existido naturalmente". Ele diz que isso é péssimo. Para Venter, essa é a ideia central.
Mas não há problemas éticos novos nesse caso. A humanidade vem tentando assumir o papel de Deus com animais e plantas desde a invenção da agricultura e nossas espécies domesticadas já são as mais preponderantes (na sua espécie) no planeta.
Venter, numa aplicação inversa do princípio da precaução, promoveu um debate bioético sobre cada etapa do seu programa antes de levá-lo a cabo. Os perigos - do bioerro e do bioterror - podem ser grandes, mas não são maiores que os apresentados por organismos naturais usados para o mal.
No caso desses organismos sintéticos, os benefícios potenciais são enormes e vão além de uma bactéria que pode sintetizar combustível ou vacinas ou exaurir derramamentos de petróleo. Todo alimento poderá ser produzido por organismos concebidos do nada - como também toda fibra que vestimos, o assoalho sobre o qual caminharmos ou teto sob o qual nos abrigamos. As possibilidades vão além da nossa imaginação.
(O Estado de SP, 23/5)
+++++