19. Dilemas da vida artificial
Criação de célula sintética abre debate sobre biossegurança, ética e religião
Um dia depois do anúncio histórico da criação de vida artificial no laboratório do geneticista Craig Venter - o mesmo responsável pela decodificação do genoma humano em 2001 -, o presidente dos EUA, Barack Obama, pediu a seus conselheiros especializados em biotecnologia para analisarem as consequências e as implicações da nova técnica. E elas não são poucas. Da segurança do uso às implicações filosóficas de se gerar vida em laboratório, a polêmica está apenas começando.
A apresentação da primeira célula sintética inaugura uma nova era da biologia, com promissoras perspectivas, como a criação de micro-organismos programados para funções específicas de produzir vacinas e combustível, por exemplo. Mas gera também apreensão em especialistas em bioética e biossegurança, dado o seu potencial praticamente ilimitado, além de desafiar as noções religiosas sobre o início da vida.
Uma tecnologia que traz a perspectiva de criar vida a partir, basicamente, do zero, e de alterar formas de vida naturais pode ter consequências perigosas em mãos de terroristas, por exemplo.
Venter defende nova legislação
O próprio Venter, ao fazer o anúncio na quinta-feira, disse que consultou muitos especialistas em ética antes de começar sua pesquisa e que informou à Casa Branca sobre o estudo, devido às implicações de segurança, já que a técnica poderia ser usada para sintetizar armas biológicas.
Em carta enviada na sexta-feira (21/5) à Comissão Presidencial para o Estudo de Questões Bioéticas, Obama pediu para que o grupo considere "o potencial médico, ambiental, de segurança e outros benefícios desse campo de pesquisa, assim como riscos potenciais para a saúde, segurança e outros". Além disso, a comissão deve apontar as apropriadas fronteiras éticas da nova técnica e traçar recomendações para minimizar os riscos identificados.
Nos EUA, como no Brasil, a legislação não contempla a criação de vida artificial, nem a chamada biologia sintética.
- O tema pede uma regulamentação porque é um tipo de risco que precisa ser avaliado, não só porque pode ser usado como bioarma, mas também pelos potenciais riscos ambientais e à saúde humana - afirma o coordenador do curso de Biossegurança da Fiocruz, Silvio Valle. - Essa tecnologia, associada à nanotecnologia, por exemplo, pode criar, num futuro não muito distante, a era dos biohackers.
Para Valle, a biologia sintética precisa de uma normatização urgentemente, não só nos EUA, mas também no Brasil. Para ele, a tecnologia é muito acessível e é preciso haver mais rigor.
- Hoje, no país, não temos essa legislação, nem um órgão com a legitimidade para analisar a biologia sintética - sustenta. - A atual Lei de Biossegurança não contempla essas questões.
Integrante do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, Volnei Garrafa concorda com Valle:
- A busca pelo conhecimento deve ser livre; a obrigação da ciência é ser a parideira do futuro - sustenta. - Mas a construção desses novos modelos e sua utilização devem ser rigorosamente controladas. Seu uso deve ser exclusivamente para pesquisa.
O próprio Venter se declarou preocupado com o uso de sua tecnologia e defende a criação de normas específicas para o setor.
- Temos que estar preocupados - afirmou o geneticista em entrevista ao "Independent". - Tratase de uma tecnologia poderosa e já propus novas regulamentações no setor porque acho que as atuais não são suficientes. Como somos os responsáveis pela tecnologia, queremos que todo o possível seja feito para evitar seu uso errado.
Excluindo Deus da origem da vida
Para muitos, Venter não criou "vida artificial", como aponta um artigo publicado na sexta-feira no "Independent".
"Ainda falta muito para isso", sustenta o texto do jornal britânico. O geneticista Sérgio Danilo Penna é da mesma opinião.
- Não houve criação de vida - afirmou. - Ele simplesmente trocou o genoma de uma célula viva por um genoma artificial. A vida é uma propriedade da célula e não do genoma.
Mas a polêmica vai além. Ao criar um organismo que se autorreplica "com quatro garrafas de produtos químicos e um sintetizador, a partir de informações arquivadas num computador", como anunciou, Venter chegou muito perto de decifrar as origens da vida e dessacralizou a questão, abrindo outra polêmica, desta vez filosófica e religiosa.
Autoridades da Igreja Católica disseram na sexta-feira que a criação da primeira célula artificial em laboratório pode ser algo positivo, se usado corretamente. Mas advertiram que apenas Deus cria a vida.
- Vemos a ciência com grande interesse, porém acreditamos sobretudo no significado que se deve dar à vida - declarou o especialista em bioética do Vaticano, Rino Fisichella, em entrevista à rede italiana RAI. - Só podemos chegar a conclusão de que necessitamos de Deus.
Até hoje, um dos maiores desafios da ciência é revelar como a vida teria começado no planeta. Em outras palavras, revelar como matéria orgânica surgiu a partir de inorgânica. Várias experiências tentaram replicar o evento sem sucesso total, deixando um espaço para os religiosos atribuírem a Deus o feito.
A experiência de Venter não explicou como a vida começou. Mas chegou bem perto disso, ao mostrar que, sob determinadas condições, fragmentos químicos podem se unir para formar vida.
"Venter nos transformou em Deus?" é o título do artigo publicado na sexta-feira no site do jornal britânico "Guardian", pelo comentarista Andrew Brown. Para o especialista em bioética da Universidade da Pensilvânia Arthur Caplan, no mínimo, Venter excluiu Deus da equação da vida.
- Diziam que só Deus poderia criar a vida. Por séculos, sempre disseram que não era possível entender a vida, que ela era algo único, especial, cuja explicação estaria além da ciência. Aristóteles e outros grandes pensadores diziam que a vida era uma força especial - frisou Caplan, que assina um artigo sobre o tema na "Nature". - A experiência de Venter mostrou que isso não é verdade. Ela revelou que, com determinadas substâncias químicas, sob certa situação, a vida pode surgir.
Do ponto de vista filosófico isso é muito importante. Muitos hão de perguntar: então a vida se reduz a uma explicação química reducionista? A resposta é sim. Mas isso não significa, destacou, que a vida não seja maravilhosa. - Apenas que não é mágica nesse sentido.
(Roberta Jansen)
(O Globo, 22/5)
+++++