JC e-mail 3952, de 19 de Fevereiro de 2010.
21. Um vírus que faz parte de nosso corpo, artigo de Fernando Reinach
"Existem outras fontes de variabilidade genética além da simples mutação dos genes herdados de nossos ancestrais"
Fernando Reinach é biólogo. Artigo publicado no "Estado de SP":
Em 1885 uma nova doença se espalhou pelos regimentos de cavalaria do exército alemão. A doença, altamente contagiosa, matou grande parte dos cavalos. Como atacou primeiro as cavalariças da pequena vila de Borna, o vírus responsável foi batizado de Bornavírus. Recentemente, o ciclo de vida desse vírus foi estudado e seu genoma decifrado.
Conhecida a sequência de seu DNA, os cientistas decidiram verificar se existiam sequências semelhantes nos bancos de dados. A surpresa é que foram encontradas quatro cópias de um dos genes do Bornavírus no genoma humano.
O mais impressionante é que uma dessas cópias produz uma proteína que, até agora, era considerada uma constituinte legítima de nosso corpo. Tudo indica que, após ter sido incorporado ao nosso genoma, esse gene do Bornavírus sofreu mutações e passou a ter um papel ativo no corpo humano.
A maneira como fragmentos de DNA de origem viral são incorporados no genoma de outros animais é bem conhecida. Imagine que durante a epidemia nos cavalos de Borna um animal tenha sido infectado pelo vírus e sobrevivido. Imagine agora que o vírus tenha infectado as células do testículo desse animal e um pedaço de seu DNA tenha se integrado no genoma de uma célula germinativa.
Imagine que, meses depois, essa célula tenha se transformado em um espermatozoide, fecundado um óvulo e formado um lindo potrinho. Esse potro terá o gene do Bornavírus em todas as suas células e vai transmiti-lo para seus descendentes, iniciando uma linhagem de cavalos com o vírus em seu genoma.
É assim que genes de vírus acabam alojados no genoma das espécies que infectam. No caso dos seres humanos, sabemos que 8% de nosso genoma é composto por milhares de cópias de retrovírus, um grupo de vírus ao qual pertence o HIV, causador da aids.
Quando os cientistas procuraram cópias do gene do Bornavírus no genoma de diversos animais, descobriram que não somos os únicos animais que possuem esse gene. Grande parte dos primatas, como gorilas, orangotangos e chimpanzés carregam o gene, que também foi encontrado em elefantes, ratos, camundongos e até mesmo em um esquilo.
Comparando as sequências dos genes presentes nos diversos primatas foi possível descobrir que o gene que compartilhamos como os chimpanzés e gorilas entrou na nossa linhagem há mais de 40 milhões de anos. A cópia presente nos seres humanos é mais parecida com a presente nos macacos do que com a presente no próprio vírus. No caso do porco-da-índia, que também possui uma cópia desse gene, o evento de incorporação é bem mais recente e o gene ainda é muito parecido com a cópia existente nos Bornavírus.
A incorporação do gene na linhagem dos primatas deve ter ocorrido quando um Bornavírus causou uma epidemia da doença na população do primata ancestral que deu origem aos primatas modernos. Quando esse ancestral originou as linhagens que deram origem ao chimpanzé, ao orangotango e ao Homo sapiens, ele transmitiu a cada uma dessas linhagens uma cópia do gene.
Em outras palavras, carregamos esse pedaço de Bornavírus desde antes do surgimento do Homo sapiens. Após ter sido incorporado no genoma dos primatas, esse gene passou por muitas modificações antes de assumir sua função atual.
Essa descoberta demonstra que os mamíferos incorporaram em seu genoma genes provenientes de diferentes vírus e que alguns deles foram cooptados e passaram exercer novas funções. A conclusão é que existem outras fontes de variabilidade genética além da simples mutação dos genes herdados de nossos ancestrais
(O Estado de SP, 18/2)