JC e-mail 4364, de 14 de Outubro de 2011.
Artigo de Paulo Ghiraldelli Jr enviado ao JC Email pelo autor.
Há quem acredite que o professor de filosofia do ensino médio é um poderoso marxista, capaz de transformar todos os garotos em Lenines ferozes, em pleno século XXI no Brasil. É assim que a extrema direita vê o professor de filosofia do ensino médio.
Uma parte da esquerda e, enfim, do senso comum, de modo semelhante à direita, também vê o professor de filosofia do ensino médio como detentor de grande poder. Essas pessoas imaginam que ele é o super herói que irá libertar os jovens de duas palavras que a esquerda adora colocar no lugar daquilo para o qual as igrejas usam a palavra "diabo": "neoliberalismo" e "alienação".
Certo senso comum desligado de partidos, não raro também confere poder ao professor de filosofia do ensino médio. Dá-lhe a capacidade de "fazer o aluno pensar" e "ser crítico". Nessa via, há quem diga que o governo da Ditadura Militar tirou a filosofia do ensino médio não porque queria fazer a reforma posta pela LDB 5.692/71, mas porque, maquiavelicamente, não queria que "o povo" viesse a "aprender a pensar" (!).
Mas há, também, os que não pensam que o professor de filosofia tenha algum poder a não ser o de fazer o aluno perder tempo com conteúdos inúteis. De modo tão ingênuo quanto os que conferem poder ao professor, estes imaginam que qualquer professor de matemática ou português, formado corretamente ou não, é útil e bom, enquanto que o professor de filosofia sempre será alguém disposto a colocar o aluno para estudar "sexo dos anjos".
Revolucionário, influente, super-herói - eis o professor de filosofia do ensino médio. Maluco, inútil, tolo - eis o professor de filosofia do ensino médio. Infelizmente, de uns tempos para cá, nossa sociedade tem apostado antes nesses mitos do que em qualquer visão menos fantástica a respeito do jovem que, tendo se formado em filosofia na universidade, pega sua turma de ensino médio para falar de Platão ou de Descartes.
Por conta dessas visões míticas, surge na imprensa um debate pouco alvissareiro. Discutimos hoje, no âmbito federal e, também, nos estados, uma reforma do ensino médio. Há várias propostas. Algumas novidadeiras, outras que parecem novidades, mas que apenas recuperam bons tempos do passado. No meio disso, por conta da visão mítica em relação ao professor de filosofia, eis que repentinamente reaparece a guerra a respeito do aumento ou não de aulas de filosofia.
Que as aulas de filosofia no ensino médio são poucas, isso não há dúvida. Qualquer pessoa de bom senso que olhe para o ensino médio brasileiro, hoje, dirá o seguinte: primeiro, falta um bom salário para que os estados que fizeram concursos consigam manter os melhores colocados (exclusivamente por nota) entusiasmados e na sala de aula; segundo, não é possível manter a distribuição das disciplinas como está, pois é mais produtivo que exista uma harmonia maior entre os assuntos que devem ser estudados.
Quem não pensa essas duas coisas, ao menos em uma primeira vista, está por fora do assunto "educação" no Brasil. Assim, em termos mais imediatos, garantir uma política salarial de ganhos reais crescente é fundamental. O estado de São Paulo, por exemplo, que fez concurso, só vai segurar seus concursados no magistério se ampliar salários. Há bons professores novos de filosofia na rede paulista. Eles já tomaram posse. Vão entrar em sala de aula no início de 2012. No momento, eles estão fazendo curso a distância para se prepararem melhor, e estão ganhando, em casa, para tal. É uma boa medida. Inédita e boa.
Agora, para que eles se saiam bem, especialmente os de filosofia, é necessário um maior tempo em sala de aula. E isso tem de ser ponderado para além dos mitos elencados acima. O professor de filosofia é um professor a mais. Seu trabalho não envolve milagres ou desgraças. Não é algo apocalíptico. O professor de filosofia é aquele que vai colocar nas mãos dos alunos uma literatura - a filosófica - que os outros professores não vão colocar. Com essa literatura diferente, os alunos tenderão a ampliar o vocabulário, aprender algumas técnicas melhores de leitura, compreender melhor os conceitos das outras disciplinas e, talvez, ganhar um certo respeito ao modo lógico de pensar etc. Fazendo tudo isso, sairão alunos melhores, estudantes com maior potencial técnico. E assim, sendo melhores leitores, terão mais aptidão para ver cinema e TV, ler jornais e, enfim, poderão ter mais facilidade profissional. Alguns, ajudados pelo ambiente familiar, também serão melhores cidadãos, bons filhos, bons pais e cônjuges responsáveis.
Aliás, nenhuma disciplina do ensino médio é mais ou menos profissionalizante que outra. O ensino médio é um ensino tradicionalmente ligado à ampliação da cultura geral, e por isso acaba por ser profissionalizante. No Brasil, certamente! Pois o Brasil cresce no setor de serviços. Então, ter chance no mercado de trabalho no Brasil é algo de quem tem melhor cultura geral. Não é a Matemática sozinha que profissionaliza um moço. Não é a disciplina Português sozinha que profissionaliza uma moça. O que profissionaliza alguém no ensino médio é a capacidade de poder pegar um emprego e aprender melhor e mais rapidamente o serviço ali posto. Uma garota que se emprega numa locadora de DVDs deve saber fazer o troco correto do que recebe do cliente. Pode usar a calculadora para tal. Mas há algo que a calculadora não faz, que é expor o filme para o cliente de um modo que ele se sinta apoiado na sua escolha da fita. Calcular é com a matemática e com a máquina. Contar o filme para indicar ao cliente é algo da filosofia, em colaboração com o português, ou seja, com a literatura. Dar dicas da crítica do filme é algo que exige o inglês e o espanhol. Quanto mais cultura, maior a capacidade de profissionalização.
O professor de filosofia é aquele que coloca no ensino médio os livros que, sem ele, seriam esquecidos pelos outros professores. Livros importantes. Nenhum de nós, com alguma cultura, diria que o Brasil é um país interessante se o Brasil não pudesse incentivar os jovens de antes dos dezoito anos à leitura de Platão ou de Pascal, de Santo Agostinho ou de Descartes. Essas leituras não criam milagres ou desgraças, elas apenas dão condição dos seus leitores gostarem de ler coisas diversificadas e, então, pedir para ler mais e mais também em outras áreas. Uma história puxa a outra.
Quando o professor de filosofia for visto como um professor como outro qualquer, teremos começado a entender o que é o correto no ensino médio. O ensino médio, na nossa tradição, é o lugar em que o jovem encontra a parte substancial da cultura do Ocidente, é a base geral que um povo deve ter em termos de integração com o mundo. As grandes nações jamais se tornaram grandes nações estreitando a formação dos jovens entre 14 e 18 anos. Essa é uma decisão técnica, não ideológica. É uma decisão que aquele que a toma se mostra mais inteligente do que aquele que se indispõe contra ela.
Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, escritor e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).