Em 2006 eu tive o privilégio de apresentar um seminário em renomada universidade brasileira juntamente com dois colegas de mestrado. O tema de nosso seminário era sobre como se dá a comunicação científica – do cientista ao jornalista até ao leitor. A parte do trabalho que me coube foi ‘batizada’ de ‘Telefone sem fio’ [isso mesmo, aquela brincadeira infantil].
A definição a seguir foi tirada da Internet e, lamentavelmente eu perdi o link de referência.
A brincadeira do telefone sem fio é uma tradicional brincadeira popular que funciona assim: numa roda de muitas pessoas, quanto mais pessoas mais engraçado ela fica, o primeiro inventa secretamente uma palavra e fala - sem que ninguém mais ouça - nos ouvidos do próximo (à direita ou à esquerda). Assim, o próximo fala para o próximo e assim por diante até chegar ao último. Quando a corrente chegar ao último esse deve falar o que ouviu em voz alta.
Geralmente o resultado é desastroso e engraçado, a palavra se deforma ao passar de pessoa para pessoa e geralmente chega totalmente diferente no destino. É possível competir dois grupos para ver qual grupo chega com a palavra mais fielmente ao destino.
Costuma-se também fazer referência a essa brincadeira em qualquer situação que possa haver falhas de comunicação num ambiente que depende de um passar a informação para o outro sucessivamente até chegar num destino. Pode-se fazer crítica a alguma hierarquia numa empresa, por exemplo, dizendo que a ordem do chefe passou como um "telefone sem fio" até chegar ao último empregado que a executou de forma totalmente diferente.
Será que esse tipo de coisa não acontece na divulgação científica? Vamos ver...
O que a divulgação científica não é e o que ela deve ser [1]:
• Divulgar não é ensinar. Não são simples textos didáticos, mas devem despertar o interesse dos leitores.
• Divulgar não é mitificar a ciência. É preciso passar uma imagem mais ‘humana’ da ciência, e não ficar somente na promoção das ‘histórias de sucesso’. Os cientistas enfrentam obstáculos e problemas.
• Divulgar é despertar o espírito crítico dos leitores. As repercussões das pesquisas devem ser ressaltadas – cultural, social, econômica, política ou ambiental. Levar os leitores a fazer perguntas.
Mas...
“É obrigação da ciência e do jornalista científico desvendar como as coisas são e como funcionam, o que inclui ampliar, rever, confirmar ou infirmar constantemente o conhecimento científico. Seu compromisso é com a verdade científica, sempre provisória, refutável e remodelável”. [2] [Ênfase adicionada]
Três graus da comunicação científica
Há três graus de comunicação científica [3]:
A alta divulgação – dirigida a um público relativamente seleto composto de pessoas instruídas, mas não especialistas nos assuntos tratados ou nas disciplinas abordadas (Nature, National Geographic, Scientific American Brasil, New Scientist, Science, Ciência Hoje, Pesquisa Fapesp). Leitores essencialmente universitários.
A divulgação para o grande público – uma audiência mais ampla. A informação é diluída, e pressupõe-se que os leitores tenham menos conhecimentos: Discover, Galileu, Superinteressante, revistas - VEJA, ÉPOCA, ISTOÉ, e jornais -Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil.
A divulgação científica para as crianças – não pressupõe qualquer conhecimento em ciência, o conhecimento dos leitores é bastante diluído e a informação é apresentada de modo adequado para esse tipo de leitores despertando-os para a ciência: Ciência Hoje das Crianças.
Lucy ou Lúcio?
Storrs L. Olson, da renomada instituição científica americana Smithsonian Institution, ‘falou e disse’ sobre a não menos famosa revista americana de divulgação científica popular National Geographic:
“A National Geographic atingiu o nível baixo de todos os tempos por se engajar num jornalismo tablóide sensacionalista e não fundamentado”. [4]
Depois de ler a edição brasileira da National Geographic sobre ‘O bebê de Lucy’ eu pude entender porque Olson disse isso a respeito desta agora não mais confiável revista de alta divulgação científica – ela ajuda a perpetuar o ‘mito de Lucy’ quando na verdade o fóssil de Australopithecus afarensis que foi descoberto era de um macho! [5]
Não somente isso, intencionalmente deixa de informar aos leitores não especializados que o fóssil encontrado foi precipitadamente classificado como sendo Australopithecus afarensis, a despeito de uma voz dissonante responsável – Dr. Jeffrey Schwartz, professor de Antropologia – Universidade de Pittsburgh, ter dito que a classificação fora muito precipitada. Schwartz explicou que o problema é que “Lucy” [mas não era ‘Lúcio’?] e este fóssil de ‘bebê’ de Dikika foram classificados como Australopithecus afarensis, que não é da Etiópia, mas de Laetoli, um sítio paleoantropológico na Tanzânia a milhares de quilômetros ao sul.
Muito embora outros espécimes de Laetoli sejam semelhantes a este, definido como A. afarensis, estudo recente de virtualmente todos os fósseis da região de Lucy [eu teimo chamar de ‘Lúcio’] da região de Hadar por Schwartz e Ian Tattersall, curador de antropologia do American Museum of Natural History em Nova York, revelou que nenhum é semelhante em detalhe aos fósseis de Laetoli. [6]
Olson, parece que toda a Grande Mídia Internacional e Tupiniquim, quando a questão é divulgação científica, e especialmente as especulações transformistas de Darwin, praticam um jornalismo tablóide de quinta categoria!
Quanto à importância de Schwartz e Tattersall junto à comunidade científica a obra deles - The Human Fossil Record, é considerada como a ‘Bíblia da Paleoantropologia’. Esta obra fornece um compêndio de descrições uniformes e ilustrações dos fósseis de todos os principais sítios que documentam o passado evolutivo humano. Ela focaliza na documentação da morfologia, a base essencial para todas as demais análises da história biológica humana. Os fósseis são apresentados sítio a sítio em ordem alfabética, com cada verbete de sítio contendo a descrição morfológica, ilustrações dos fósseis, informação sobre a localidade, história da descoberta, avaliações sistemáticas prévias dos fósseis, dos contextos geológico, arqueológico, e da fauna, datação, e referências à literatura primária. [7]
O American Journal of Human Biology referendou a obra de Schwartz, Tattersall et al como sendo “...uma obra de referência útil para qualquer paleoantropólogo interessado nos hominídeos antigos... Você deve comprar o livro e faça com que seus alunos o compre também...vale a pena o investimento”. [8]
Conclusão parcial
“Há uma necessidade muito grande de os jornalistas terem uma formação melhor em ciências. Isso é uma condição necessária para ser um bom jornalista científico, embora não seja suficiente. O recíproco vale para o cientista, que precisa aprender a falar com as pessoas que não são especialistas”. [9] [Ênfase adicionada]
Eu espero que a minha pequena contribuição na Academia possa contribuir um pouco para uma melhora substancial no jornalismo científico em Pindorama.
Fui, enxergando com os meus próprios olhos nos ombros dos gigantes abaixo...
P.S.: Um pouco de falsa modéstia – foi um dos melhores trabalhos apresentados naquela universidade em 2006.
NOTAS:
[1] MALAVOY, S. Guia Prático de Divulgação Científica. Rio de Janeiro, Casa de Oswaldo Cruz, 2005, p. 6.
[2] FROTA-PESSOA, O. “Herança Cultural, Ciência e Discernimento”, in KREINZ, G. & C. Pavan, orgs. Anais [do] Congresso Internacional de Divulgação Científica – Ética e Divulgação Científica: Os desafios do Novo Século, São Paulo, NJR/ECA/USP, 2004, p. 93.
[3] MALAVOY, op. cit., p.76.
[4] “National Geographic has reached an all-time low for engaging in sensationalistic, unsubstantiated, tabloid journalism”
[5] HÄUSLER, M. e P. Schmidt. “Comparison of the pelvis of Sts 14 and AL 288288-1: implications for birth and sexual
dimorphism in australopithecines”, Journal of Human Evolution 29:363-83, 1995; SHREEVE, J. “Sexing fossils: a boy named Lucy”, Science 270:1297-1298, 1995.
[6] SCHWARTZ, J. in EurekAlert http://www.eurekalert.org/pub_releases/2006-10/uop-acs100206.php que toda a Grande Mídia Tupiniquim recebe diariamente. Quer dizer, houve omissão intencional dos editores em não mencionar esta importante voz científica dissonante.
[7]Jeffrey H. Schwartz, Ian Tattersall, Ralph L. Holloway, Douglas C. Broadfield, Michael S. Yuan, The Human Fossil Record, 4 Volume Set, ISBN: 0-471-67864-3, Capa dura, 1843 pp., Maio de 2005,
[8] Simplesmente a bagatela de US $640.00, mas que todas as bibliotecas universitárias deveriam possuir.
[9] HAMBURGER, E. “Um Panorama da Difusão da Ciência”, in KREINZ, G. & C. Pavan, orgs. Anais [do] Congresso Internacional de Divulgação Científica – Ética e Divulgação Científica: Os desafios do Novo Século, São Paulo, NJR/ECA/USP, 2004, p. 135.