Darwin über Alles 3-5

segunda-feira, junho 30, 2008

JC e-mail 3543, de 30 de Junho de 2008

13. Wallace, o outro pai da evolução

Paralelamente a Darwin, o biólogo Alfred Russel Wallace traçou as idéias da teoria da seleção natural

Herton Escobar escreve para “O Estado de SP”:

Cento e cinqüenta anos atrás, no dia 1º de julho de 1858, a teoria da evolução por seleção natural foi apresentada pela primeira vez à Sociedade Lineana de Londres, na Inglaterra. A descoberta era assinada por dois naturalistas britânicos. O primeiro era Charles Darwin.

O outro, freqüentemente esquecido, era um jovem biólogo autodidata, que chegara às mesmas conclusões pesquisando espécies do sudeste asiático, nas florestas do Arquipélago Malaio. Seu nome era Alfred Russel Wallace.

Um século e meio depois, a história selecionou Darwin como ícone supremo do pensamento evolutivo, enquanto Wallace foi reduzido ao status de espécie ameaçada, ofuscado pelo brilho daquele que foi seu ídolo científico. Poucos hoje sabem que Alfred Russel Wallace existiu. Menos ainda sabem que ele começou sua carreira de naturalista no Brasil.

Wallace passou quatro anos na Amazônia, coletando plantas e animais às margens do Rio Negro e do médio Amazonas. Desembarcou no porto de Belém em 26 de maio de 1848, acompanhado de outro jovem naturalista britânico, o amigo Henry Bates. Tinham apenas 25 e 23 anos.

A idéia era coletar o maior número possível de plantas e bichos exóticos da floresta, que depois seriam levados de volta à Inglaterra para estudo. Buscavam pássaros, peixes, borboletas e outros insetos interessantes. Para pagar as contas, enviavam duplicatas para um agente em Londres, que vendia os espécimes para colecionadores ou museus e remetia o dinheiro de volta.

Desastre

O plano quase deu certo. Após quatro anos de trabalho duro, vivendo embrenhado na floresta e com a saúde fragilizada, Wallace juntou o que tinha e embarcou de volta para a Inglaterra em 12 de julho de 1852. No meio do Atlântico, um desastre: o navio pegou fogo.

O jovem naturalista assistiu de um bote salva-vidas seu patrimônio científico ser consumido pelas chamas no oceano. Salvaram-se apenas algumas anotações e desenhos que estavam em sua cabine - entre eles, vários rascunhos de peixes e palmeiras, que cientistas brasileiros usam até hoje como referência.

A alfândega brasileira deu sua contribuição. A maioria dos espécimes que deveriam ter sido despachados para a Inglaterra nos últimos dois anos da expedição ficou retida em Manaus, de modo que Wallace precisou carregar tudo de uma vez na viagem de volta - tornando o prejuízo muito maior.

“Com qual prazer eu admirava cada inseto raro e curioso que eu havia adicionado à minha coleção! Quantas vezes, quando quase derrubado pela febre, não me arrastei pela floresta e fui recompensado com alguma bela e desconhecida espécie! Quantos lugares, nos quais nenhum europeu havia pisado antes de mim, seriam resgatados à minha memória pelas aves e insetos raros que eles haviam proporcionado à minha coleção!”, escreveu Wallace.

“Agora tudo estava perdido, e eu não tinha um único espécime para ilustrar as terras desconhecidas pelas quais eu havia caminhado ou para resgatar a lembrança das cenas selvagens que eu havia presenciado.”

Após dez dias à deriva, tapando vazamentos com rolhas,Wallace e a tripulação foram resgatados por um navio de passagem. Voltou para a Inglaterra sem dinheiro e sem bichos, mas conhecido o suficiente para ganhar uma passagem de graça para outra expedição, dessa vez para o Arquipélago Malaio (atual Indonésia). Foi lá que, em fevereiro de 1858, ele formulou sua teoria sobre a origem das espécies.

Iniciação científica

Wallace descreveu algumas espécies da Amazônia - entre elas a palmeira piaçava (Leopoldinia piassaba), usada na fabricação de vassouras -, mas não produziu nenhuma grande descoberta enquanto esteve lá. Nem por isso a viagem deixou de ser produtiva. O comércio de espécimes era apenas uma fonte de subsistência. O que Wallace queria mesmo, desde que colocou os pés na floresta, era descobrir a origem das espécies.

“Ele claramente já tinha uma hipótese quando embarcou para o Brasil”, diz George Beccaloni, pesquisador de insetos do Museu de História Natural britânico e especialista em Wallace. “Essa era sua motivação principal - muito diferente de Darwin, que ainda era cristão, não acreditava na evolução e não tinha nenhuma hipótese quando embarcou no Beagle.”

A Amazônia foi a escola que Wallace não freqüentara (nascido numa família pobre, ele abandonou os estudos aos 13 anos). “A extraordinária biodiversidade brasileira foi um ponto decisivo, ao colocar de maneira premente para ele a questão de como explicá-la racionalmente”, diz o físico e divulgador científico Ildeu de Castro Moreira.

Wallace é considerado o pai da biogeografia, ciência que estuda a relação entre fatores ambientais, geológicos e a distribuição de espécies. Ele foi o primeiro a descrever os grandes rios amazônicos como barreiras geográficas à biodiversidade - um conceito básico da ecologia moderna.

Wallace notou que, nos trechos largos dos rios, os macacos de um lado eram diferentes das espécies do outro lado. Mais tarde, essa observação se tornaria um dos pilares da teoria da evolução, explicando como o isolamento pode transformar duas populações de uma mesma espécie em espécies diferentes.

“Não há especiação sem isolamento geográfico e reprodutivo. Wallace entendeu isso perfeitamente”, diz Nelson Papavero, biólogo aposentado do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo.
(O Estado de SP, 30/6)

O herói esquecido da evolução

Wallace (1823-1914) chegou a ser considerado o maior cientista britânico. Diferentemente de Darwin, era um polímata: seus interesses iam da história natural ao manejo florestal, passando pela política de saúde pública (foi opositor das vacinas) e pelo espiritismo -fato que o distanciou de Darwin. No entanto, esse outro pai da seleção natural acabou relativamente esquecido.

Tanto que as comemorações a Wallace acontecerão em novembro deste ano, com a publicação do livro "Natural Selection and Beyond: The Intellectual Legacy of Alfred Russel Wallace", editado por Charles Smith e George Beccaloni.

"Está saindo deliberadamente neste ano e não no próximo", ri o britânico Peter Raby.

Professor de literatura em Cambridge, Raby é autor da biografia do naturalista, "Alfred Russel Wallace: A Life" (2002). Em entrevista à Folha, Raby comenta o legado de Wallace e acusa a existência de uma "indústria acadêmica" de Darwin em sua universidade.

Leia os principais trechos da entrevista:

- Por que Wallace ficou relegado a uma nota de rodapé, quando aparentemente ele intuiu a seleção natural mais rápido que Darwin?

Tem havido uma enorme indústria acadêmica em torno de Darwin emanando de Cambridge nos últimos 20 ou 25 anos. O Projeto Darwin, que publicou toda a correspondência dele, após um enorme esforço de pesquisa, é um exemplo. A outra faceta disso é que a "Origem das Espécies" foi publicada quando Wallace ainda estava no exterior. E Wallace, embora tenha publicado diversos livros famosos, nunca teve a oportunidade de preencher o esqueleto da teoria com o mesmo tipo de exposições detalhadas que Darwin apresentou. Quando Wallace voltou para casa, a "Origem das Espécies" havia ocupado a proeminência. Wallace planejou, sim, um grande livro...

- ...mas ele estava ocupado demais ganhando a vida.

Sim, e estava longe de bibliotecas, vivendo uma vida de naturalista coletor independente. Ele não teve a oportunidade de se sentar e escrever e fazer as pesquisas detalhadas que Darwin teve tempo de fazer. Mas, mesmo assim, é estranho que Wallace tenha se dissipado do imaginário popular. Se você olha para as publicações da Sociedade Lineana, é muito claro que a teoria de Wallace é a afirmação mais lapidada, enquanto os documentos de Darwin não têm a mesma completude. Muita gente, naquela época, dizia a Wallace: "Por que você fica falando na teoria de Darwin? A teoria é tão sua quanto dele!" [Charles] Lyell era uma dessas pessoas; ele dizia a Wallace: "Você é modesto demais"! Sim, ele era. A outra razão pela qual ele acabou apartado da doutrina foram suas reservas posteriores quanto à seleção natural e a origem do homem. Darwin ficou chocado com aquilo que ele chamou de "apostasia" de Wallace. Embora Wallace tenha desposado o darwinismo muito entusiasticamente, ele mesmo fez essa grande ressalva. Acho que essa é uma razão mais compreensível para Wallace ter sido jogado de escanteio.

- Nós temos alguma razão para imaginar que Darwin tenha se aproveitado do artigo de Wallace para escrever seu capítulo sobre seleção natural?

(Pausa) Bem, há versões diferentes dessa história. Um livro acaba de ser publicado por Roy Davis chamado "Darwin Conspiracy" ("A Conspiração de Darwin"). Há algumas perguntas sem resposta sobre como Darwin agiu. Eu diria que foi Hooker o responsável por assegurar que Darwin tenha obtido o maior crédito possível pela publicação conjunta. O próprio Darwin ficou ligeiramente surpreso ao ver que seus documentos acabaram sendo mais do que apêndices ou notas de rodapé aos de Wallace. Quanto à sugestão de a carta de Wallace ter chegado antes do que Darwin disse que ela chegou, portanto dando a Darwin tempo de escrever e pensar a respeito, é um cenário perfeitamente plausível. Só que eu não acho que haja nenhuma evidência concreta disso. O argumento de Roy Davis é que o sistema de correios da Holanda [a Malásia e a Indonésia eram colônias holandesas quando Wallace estava no Pacífico] eram extremamente eficientes, e se tudo corresse conforme planejado, a carta deveria ter chegado antes de 1º de junho de 1858. É uma hipótese interessante, mas, a meu ver, especulativa. A questão continua em aberto. Fato é que Wallace não recebeu todo o crédito que deveria ter recebido.

- O sr. esteve no Brasil durante as pesquisas da biografia de Wallace?

Infelizmente não. Eu tinha pouco tempo e pouco dinheiro na época. Fui a Cingapura e a Sarawak [Malásia], porque eu queria ver pelo menos um lugar onde Wallace pesquisou. Espero poder ir ao Brasil, porque há outras pessoas nas quais eu sou extremamente interessado que viajaram pela Amazônia. Meu livro anterior, "Bright Paradise", era sobre viajantes científicos vitorianos. Eu escrevi sobre Wallace, mas também sobre Richard Spruce e Henry Walter Bates.

- O quão importante foi a Amazônia na formatação da mente científica de Wallace? O sr. escreveu que, quando ele chegou ao Brasil, ele era um coletor mercenário, e quando foi para as Índias, era um cientista em formação.

Aqueles quatro anos na Amazônia moldaram a mente e a vida de Wallace. Foi em parte o ambiente da Amazônia e como ele respondia a ele. Mas também todas as reflexões que aconteceram. Claro que ele não conseguiu explorar essas reflexões da maneira como ele planejava, por causa da perda de parte de seu material [num navio que pegou fogo a caminho da Inglaterra], mas não obstante isso deu a ele a amplitude de visão e o tempo de reflexão de que ele precisava para ser mais do que um colecionador. Eu sinto muito fortemente que não a teoria final, mas seu instinto sobre as espécies, que seria esclarecido no arquipélago malaio, os alicerces disso foram construídos na Amazônia. Quando Bates escreve para ele, após ter lido o artigo de Sarawak sobre variedades de espécies-que você pode chamar de estágio 1 da seleção natural-, Bates disse mais ou menos assim: "Eu fiquei surpreso ao vê-lo se posicionando tão assertivamente sobre a teoria. Uma teoria que, como você sabe, foi minha também". O que me sugere uma ligeira censura, mas sugere também que Bates e Wallace, e talvez Spruce também, já haviam discutido essas coisas na Amazônia.

- Mesmo após a evolução, Wallace passou o resto da vida meio deslocado depois que voltou para a Europa. É verdade que ele nunca arrumou um emprego decente?

Acho que escrever se tornou o emprego decente dele. Ele escrevia muito fluentemente, num estilo muito claro. Ele achava que poderia ganhar dinheiro escrevendo livros, além de artigos. Ele se candidatou a vários outros trabalhos e não conseguiu nenhum. Ele se virava para viver. Algumas vezes ele estava bem de vida, outras vezes ele parecia apertado. Mas ele vivia muito feliz, e eu acho que essas duas grandes expedições, à Amazônia e ao arquipélago malaio, tornaram-no irrequieto psicologicamente. Ele se candidatou ao cargo de secretário-assistente da Royal Geographical Society, e não conseguiu, embora Bates, quando voltou, tenha visto no cargo uma oportunidade de se reintegrar ao "establishment" científico. Acho que Wallace curtia não seu isolamento, mas sua independência.

- O sr. vai fazer alguma coisa no dia 1º de julho?

Vou erguer um brinde a Wallace.

(Folha de SP, 29/6)