Repensando uma metodologia científica e o jornalismo científico de araque

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Aqui e ali os cientistas e jornalistas científicos contrapõem a ciência com a religião. Essa ‘contraposição mórbida’ é proposital: visa demonizar os ‘crentes’ e os críticos do materialismo filosófico mesmo que suas críticas sejam cientificamente embasadas.

Exemplo mais recente dessa ‘demonização’ é o artigo de Marcelo Leite [Caderno Mais , Folha de São Paulo, 03/12/2006] intitulado “Bíblia de araque: Se o genoma for o Livro da Vida, é obra de um copiador maluco”, destacado no JC E-Mail, órgão da SBPC voltado exclusivamente para a divulgação de ciência e tecnologia.

Eu esperava muito mais dele vez que ele é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Nem ia comentar o artigo ideologizado, mas vale a pena ressaltar aqui que Marcelo Leite culpa os jornalistas por terem bombardeado os leitores com reportagens sobre o genoma humano, entre 2000 e 2004, popularizando a noção de que havia 99,9% de coincidência no DNA de duas pessoas.

Solução? Marcelo Leite pede aos leitores que esqueçam isso, pois é muito mais complicado. Um estudo divulgado há pouco mais de uma semana mostra que isso é muito mais complicado: a identidade e diferença não residem só nas seqüências de letras do DNA mas também no número de cópias dessas seqüências.

Em vez de lidar com a verdadeira questão científica – aqui no caso, metodológico, Marcelo Leite diz que a ficha ainda não caiu para os leitores leigos que continuam a acreditar em DNA como destino. Ainda bem que ele destacou que os especialistas nada fazem para desfazer esse equívoco.

Pelo seu sub-título Marcelo Leite dá ares arrogante de onisciência dando a entender que conhece a mente do ‘copiador maluco’. Além disso, a sua analogia de que a postura dos cientistas é a mesma que “um vendedor de Bíblias alertar o cliente potencial de que elas não contêm toda a verdade para guiar a vida”, é forçar um pouco a barra de sua subjetividade atéia ou agnóstica [não sei] antagônica a respeito de um livro que, dizem, se propõe dizer tão-somente como se vai ao céu e não como os céus vão [Galileu Galilei].

O que Marcelo Leite deveria fazer, não fez e nem fará porque está de ‘rabo preso’ com a Nomenklatura científica, era denunciar mais veementemente essa desonestidade acadêmica dos pesquisadores quando se deparam com evidências contrárias às suas preferências ideológicas e não seguirem as evidências aonde elas forem dar.

O estudo daqueles pesquisadores [1] levanta inúmeras questões sobre a metodologia e aquelas pressuposições embutidas que geralmente não são reveladas para os que estão fora da comunidade de pesquisadores. Repensar três áreas se mostra mais do que necessário e inadiável:

1. A muita anunciada e incensada afirmação de que o genoma humano é somente 3% diferente dos chimpanzés. Nós realmente inferimos agora que as populações humanas são muito mais próximas dos chimpanzés do que de outras populações? Parece que algo mais significativo está acontecendo nesta área.

2. O conceito de que o genoma humano pode ser documentado, com todas as variantes tratadas como mutações aleatórias. A indicação é, antes, de que o genoma é muito mais dinâmico do que isso, e que a maioria das variações não são na verdade mutações aleatórias. Uma perspectiva de design tem grande potencial para estimular novas hipóteses.

3. Por que a Grande Mídia não informa os leitores não-especializados sobre a insuficiência epistêmica do neodarwinismo? Que me desculpem os meus amigos jornalistas, isso é ‘jornalismo científico de araque’ que precisa mudar. Desde 1998 tento junto às editorias de ciência que publiquem sobre a questão científica fundamental de mudança paradigmática, mas em vão.


A História da Ciência vai mostrar a relação incestuosa da Grande Mídia Internacional e Tupiniquim com a Nomenklatura científica. Quem viver, verá.


[1] Global variation in copy number in the human genome
Richard Redon, et al.

Nature 444, 444-454 (23 November 2006) | doi:10.1038/nature05329

Abstract: Copy number variation (CNV) of DNA sequences is functionally significant but has yet to be fully ascertained. We have constructed a first-generation CNV map of the human genome through the study of 270 individuals from four populations with ancestry in Europe, Africa or Asia (the HapMap collection). DNA from these individuals was screened for CNV using two complementary technologies: single-nucleotide polymorphism (SNP) genotyping arrays, and clone-based comparative genomic hybridization. A total of 1,447 copy number variable regions (CNVRs), which can encompass overlapping or adjacent gains or losses, covering 360 megabases (12% of the genome) were identified in these populations. These CNVRs contained hundreds of genes, disease loci, functional elements and segmental duplications. Notably, the CNVRs encompassed more nucleotide content per genome than SNPs, underscoring the importance of CNV in genetic diversity and evolution. The data obtained delineate linkage disequilibrium patterns for many CNVs, and reveal marked variation in copy number among populations. We also demonstrate the utility of this resource for genetic disease studies.



Bíblia de araque: Se o genoma for o Livro da Vida, é obra de um copiador maluco
Marcelo Leite

Após o bombardeio de reportagens sobre o genoma humano, entre 2000 e 2004, popularizou-se a noção de que havia 99,9% de coincidência no DNA de duas pessoas. Esqueça isso. É muito mais complicado, como mostra mais um estudo, divulgado há pouco mais de uma semana: identidade e diferença não residem só nas seqüências de letras do DNA mas também no número de cópias dessas seqüências.

A façanha técnica e subversiva, subestimada pela imprensa não-especializada, coube ao grupo de Stephen Scherer, do Instituto Médico Howard Hughes (EUA). Deu margem, no último dia 23, a uma salva de quatro artigos nos periódicos "Nature", "Nature Genetics" e "Genome Research". O time descobriu que pelo menos 12% do genoma é afetado por um fenômeno antes tido por muito raro.

A versão canônica reza que cada pessoa tem duas cópias de cada um dos 20 mil ou 25 mil genes da espécie. Uma cópia está na metade do genoma herdada da mãe, outra na metade do pai. A presença de mais de duas cópias ficava na conta das anomalias, que estudos recentes associaram a problemas renais, Parkinson, Alzheimer e até suscetibilidade à Aids.

O estudo de Scherer analisou o DNA de 270 pessoas de ascendências asiática, africana e européia. Encontrou muito mais desvios do que esperava: deleções ou múltiplas cópias em trechos com até 250 mil letras que afetavam 2.900 genes conhecidos. Cada pessoa tem, em média, 70 dessas "variações no número de cópias" (CNVs, em inglês). Isso ajuda a explicar as discrepâncias entre os dois genomas humanos seqüenciados (soletrados) em 2001, pelo Projeto Genoma Humano (PGH) e pela empresa Celera.

Outros grupos já haviam comparado as duas seqüências do genoma, "mas encontraram tantas diferenças que a maioria atribuiu os resultados a erro", assinalou Scherer num comunicado do Howard Hughes. "Não conseguiam acreditar que as alterações que encontravam pudessem ser variantes entre as fontes de DNA em análise."

Thomas Kuhn ensinou que o saber convencional, em certa altura, passa a atrapalhar a correta interpretação dos dados empíricos. Parece ser esse o caso aqui -prepare-se, portanto, para um abalo no paradigma genético. Essa forma popular de pensamento determinista atribui apenas a seqüências de DNA toda e qualquer variação na saúde, no comportamento, na matéria-prima da seleção natural.

Tamanho fundamentalismo ajudou a pôr e manter de pé o bilionário PGH. Se o genoma fosse mesmo o Livro da Vida, como não se cansou de propalar James Watson (co-descobridor da estrutura em dupla hélice e primeiro diretor do projeto), o exemplar que toca a cada ser humano seria obra de um copiador maluco. Faltam páginas, outras aparecem duplicadas uma ou várias vezes, sentenças inteiras são cortadas, multiplicadas e coladas umas sobre as outras.

Pesquisas anteriores já haviam mostrado, de resto, que o calhamaço genético só tem utilidade para o organismo com rabiscos nas margens, orelhas e adesivos coloridos. No jargão dos biólogos moleculares, marcas "epigenéticas", um sistema de informação biográfica ou hereditária descasado da seqüência propriamente dita, mas fundamental para o desenvolvimento normal e a saúde do corpo.

Só falta cair a ficha para os leigos, que continuam a acreditar em DNA como destino. Os especialistas, porém, não se esforçam muito para desfazer o equívoco. Seria o mesmo que um vendedor de Bíblias alertar o cliente potencial de que elas não contêm toda a verdade para guiar a vida.

MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (http://www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br