JC e-mail 4643, de 13 de Dezembro de 2012.
Sociedade Brasileira de História da Ciência envia carta aos parlamentares sobre o projeto de lei nº 368, relativo à regulamentação da profissão de historiador.
Confira a íntegra.
A Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) vem, por meio do presente documento, manifestar suas preocupações quanto ao Projeto de Lei do Senado 368, de 2009, recentemente aprovado por essa casa legislativa, e que pretende regulamentar o exercício da profissão de historiador.
Em nossa análise, detectamos que o PL 368 apresenta alguns aspectos excessivamente restritivos, que podem constituir graves empecilhos para uma enorme parcela da comunidade brasileira de historiadores da ciência, e também pontos vagos e imprecisos, que tendem a gerar insegurança, dúvidas e conflitos com outras categorias profissionais. Consideramos que, na forma como foi aprovado, o projeto de lei não representa o desejado avanço em uma discussão antiga, nem contribui de forma equânime para fortalecer o exercício da profissão em suas múltiplas - e legítimas - apresentações.
Antes de passar à exposição de nossas preocupações concretas, e das sugestões e propostas que temos para superá-las, cabe um breve comentário sobre a SBHC e sobre a conformação do campo da História da Ciência em nosso País. Fundada em 1983, a entidade representa a expressão maior da institucionalização dessa área de conhecimento no Brasil. Promove a cada dois anos um encontro nacional, que hoje soma treze edições realizadas, a última contando com cerca de 800 participantes. Ao longo dos anos, a SBHC destacou-se no apoio ao desenvolvimento de pesquisas na área (favorecendo também a sua divulgação, através do periódico semestral que edita desde 1985) e na contribuição que teve para a formação de pesquisadores. Desde o início, caracterizou-se pela vocação interdisciplinar no que diz respeito à origem dos associados e à natureza das atividades que promove, considerando que a História da Ciência é praticada de forma absolutamente competente e profissional tanto por historiadores de formação, quanto por pesquisadores oriundos de campos como a filosofia, a sociologia, a antropologia, a educação e outros, além, é claro, das próprias áreas científicas e tecnológicas - competência e profissionalismo adquiridos ao longo de anos de experiência ou treinamento em História.
É de notar que, mesmo com formações originais tão diversificadas, o trabalho desenvolvido pela maior parte dos associados da SBHC é plenamente reconhecido como integrante legítimo do campo da História. O recente credenciamento da entidade no processo de indicação de membros do Comitê de Assessoramento da área de História do CNPq é, nesse sentido, um indício relevante. É igualmente importante registrar que uma vasta parcela dos historiadores da ciência que representamos, mesmo aqueles que não portam diplomas acadêmicos na área de História, são membros ativos da Associação Nacional de História (ANPUH), organizando simpósios temáticos e apresentando trabalhos em suas reuniões nacionais e regionais, e até coordenando o Grupo de Estudos de História da Ciência e da Técnica, reconhecido pela entidade.
Feita esta exposição inicial, passamos às nossas observações sobre o PL 368, que se concentram em quatro pontos:
1. Quem tem o direito de exercer a profissão de Historiador. Ao restringir o exercício da profissão aos portadores de diploma em História (graduação, mestrado ou doutorado), o PL 368 ignora a existência de profissionais de outras áreas que atuam no campo, muitas vezes há longo tempo e com grande competência, desenvolvendo trabalhos de fundamental importância para a área - em nosso caso, especificamente para a História das Ciências, mas certamente também para a História da Filosofia, História da Arte, História da Matemática, História do Pensamento Social, História do Direito, História da Educação etc. Esses trabalhos consistem em pesquisas plenamente reconhecidas como "históricas", na docência, em nível superior, de disciplinas especializadas, na orientação de estudantes, na organização de exposições e acervos e em tudo o mais que o PL 368 parece reservar apenas aos portadores de diplomas.
Nesse sentido, os Projetos de Lei 3759/2004 e 7321/2006, da Câmara dos Deputados, que tramitam conjuntamente e já foram aprovados em julho de 2012 pela Comissão de Constituição e Justiça da casa, são, em nosso entender, muito mais sensatos; nos artigos que definem quem pode exercer a profissão de historiador, com todas as atribuições de sua competência, ambos os projetos incluem um inciso de fundamental importância, como é o caso do PL 3759, em cujo artigo 2º lemos que:
"O exercício da profissão de Historiador (...) é assegurado:
(...)
IV - aos que, embora não diplomados nos termos dos itens anteriores, exerçam, comprovadamente, até a data de publicação da presente Lei, há 5 (cinco) ou mais anos, atividades próprias do Historiador" (com ligeira diferença de redação, o mesmo se encontra no PL 7321).
Vale lembrar que o próprio Informativo Eletrônico nº 5 da ANPUH, de abril de 2010 (que infelizmente não se encontra mais disponível na página da entidade), dizia em seu editorial: "Não somos contrários ao reconhecimento como historiadores, inclusive por parte da lei, com a proposição de uma emenda ao projeto aprovado no Senado, quando da tramitação na Câmara, daqueles profissionais com outras formações que militam há certo tempo, a ser definido em nossas discussões, no campo da história ou que possuem notório saber, adquirido através de uma prática durante anos, em nossa área do conhecimento."
Do ponto de vista da SBHC é fundamental, portanto, que a ANPUH efetivamente apoie esse reconhecimento, por parte da lei, do trabalho legítimo e competente que é desenvolvido por profissionais não diplomados na área, mas que atuam, de fato e de direito, como historiadores.
2. A questão específica do ensino de História. Em seu artigo 4º, inciso I, o PL 368 atribui privativamente aos historiadores diplomados (os únicos que o texto reconhece, afinal), o "magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior". Na educação básica, essa exclusividade é plenamente compreensível, ainda que, paradoxalmente, os milhares de professores de História formados nos antigos cursos de Estudos Sociais, que atuam há décadas em nossas escolas, muitas vezes sob as condições mais adversas, tenham sido simplesmente esquecidos (problema que seria resolvido pela adoção do inciso adicional presente nos projetos da Câmara). No caso do ensino superior, porém, além de não existir "a" disciplina de História, e sim uma multiplicidade de cadeiras especializadas, necessariamente imperam o princípio constitucional da autonomia universitária e o artigo 66 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (que reconhece o notório saber, autonomamente estabelecido pelas universidades, como condição para o magistério superior).
O fato é que, na forma como foi aprovado, o texto gera enorme insegurança, pois sugere que vários de nossos maiores historiadores da Ciência (e também da Arte, da Filosofia, da Educação, da Matemática etc., repetindo o que já apontamos anteriormente) não poderão ministrar nas universidades as disciplinas especializadas para as quais são, sem sombra de dúvida, os mais qualificados professores. Mais uma vez, é patente a necessidade de inclusão de um inciso adicional, que reconheça formalmente a competência dos historiadores não diplomados, mas reconhecidamente atuantes, e nos dirigimos à ANPUH pedindo seu apoio a essa medida.
3. As novas gerações de historiadores da ciência brasileiros. Nosso País conta hoje com um número crescente de programas de pós-graduação de caráter interdisciplinar. No caso específico da História da Ciência, há diversos cursos de mestrado e doutorado, muito bem avaliados pela Capes, que possuem essa natureza. Vários deles oferecem diplomas que envolvem o termo "História da Ciência", mas junto com expressões como "Ensino de Ciências", "Epistemologia" e outras. Ainda há casos de programas de pós-graduação interdisciplinares em que a palavra "História" não consta no título, mas em que se encontram fortes linhas de pesquisa em História da Ciência (e, de modo mais geral, há programas disciplinares, em áreas como a Arquitetura ou a Pedagogia, por exemplo, que há décadas formam excelentes historiadores da Arte ou da Educação).
É extremamente preocupante, para a SBHC, como esses profissionais serão tratados. Nos termos do PL 368, quem decidirá se os seus diplomas são aceitáveis para o registro profissional? A insegurança jurídica que será causada deve necessariamente ser prevenida desde já. Assim, instamos a ANPUH a apoiar a inclusão, no texto legal, de um mecanismo de acreditação de cursos de pósgraduação que possuam linhas de pesquisa ou áreas de concentração compatíveis com a formação histórica que todos desejamos. Esse mecanismo pode exigir a criação de um conselho profissional, tema que sabemos ser divisivo, mas trata-se do preço necessário para o justo reconhecimento de que a profissionalização em História também é adquirida em espaços interdisciplinares (ou naqueles em que, ainda que ligados a outras disciplinas, existe reconhecida tradição de pesquisa histórica).
4. As atribuições dos historiadores. Preocupa-nos, por fim, que o PL 368 (e, neste caso, também os projetos paralelos da Câmara) apresente como "atribuições do Historiador" (artigo 4º) atividades e tarefas que podem ser vistas, também, como competências de outras categorias profissionais, como museólogos, jornalistas, arquivistas, bibliotecários e outros. Cabe, ainda, perguntar quais os limites dos seguintes termos, que são empregados no texto: "temas de História", "serviços de documentação e informação histórica" e "temas históricos". Haverá necessidade de estipular um marco cronológico para designar quando um "tema" ou uma "informação" deva ser considerado "histórico"?
O PL 368 também estipula a obrigatoriedade de contratação de historiadores pelas "entidades que prestam serviços em História", mas não define o significado dessas atividades - basicamente, por confundir campo de conhecimento com mercado de trabalho. Consideramos que cabe a todos nós historiadores, em movimento coordenado pela ANPUH, uma reflexão mais aprofundada sobre as possíveis interpretações de termos tão vagos, tendo em mente que, nas nossas próprias fileiras, a definição teórica e epistemológica do "objeto da História" é saudavelmente polêmica e contestada.
Por todo o exposto, e no espírito da mais genuína colaboração, a SBHC pede à ANPUH atenção às preocupações que legitimamente apontamos, e aos mecanismos de superação que propomos. Gostaríamos de buscar os ajustes ao texto legal conjuntamente com a entidade, no âmbito da Câmara dos Deputados, e não em oposição a ela. Sabemos que seu apoio à regulamentação da profissão, ela própria uma bandeira histórica, não tem como objetivo arvorar uma certa categoria profissional em "dona do passado", mas sim contribuir para o bem público e fazer valer direitos. Essas importantes tarefas se esvaziam de significado, porém, se a lei - e o público - não reconhecer que inúmeros historiadores não são menos profissionais que outros por não portarem um diploma específico, e se esses mesmos historiadores, que a justo título merecem essa denominação, não tiverem seus próprios direitos equiparados aos dos diplomados.
Sociedade Brasileira de História da Ciência
(Diretoria e Conselho Deliberativo)