Células que levitam

terça-feira, março 23, 2010

JC e-mail 3974, de 23 de Março de 2010.

22. Células que levitam, artigo de Marcelo Leite

"Brasileiro cria técnica para cultivar tecidos humanos em 3D"

Marcelo Leite é jornalista e autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Artigo publicado na "Folha de SP":

O futuro da biotecnologia aplicada ao campo da saúde humana pode estar num coquetel bizarro de vírus assassinos de bactérias com nanopartículas de ouro e óxido de ferro magnetizado. Essas partículas virais são chamadas de bacteriófagos e apelidadas "fagos".

A mistura assume a forma de um hidrogel, usado para cultivar células em espaço tridimensional. Campos magnéticos permitem fazer as células "levitarem" nesse meio de cultura de alta tecnologia -invento com a participação de brasileiros- e até controlar a forma do aglomerado celular.

Superam-se, com isso, algumas das limitações das culturas celulares bidimensionais, sobre placas de Petri (discos de vidro). A principal está no comportamento de um "tapete" celular, muito diverso das células num órgão de verdade. O cultivo por levitação magnética chega mais perto das condições reais, "in vivo".

O primeiro autor da façanha, que ainda se encontra na fase que os pesquisadores chamam de prova de princípio, é o brasileiro Glauco Ranna Souza, 39. Souza cursou só até o ensino médio em Brasília, depois fez toda a formação acadêmica e a carreira científica nos Estados Unidos.

Ele desenvolveu a tecnologia -publicada eletronicamente pelo periódico "Nature Nanotechnology" há exatamente uma semana- no Centro de Câncer M.D. Anderson da Universidade do Texas, em colaboração com Tom Killian e Rob Raphael, da Universidade Rice, também no Texas.

Seus mentores no M.D. Anderson foram o casal de cientistas brasileiros Wadih Arap e Renata Pasqualini.

Boa parte das ideias que levaram ao hidrogel foi debatida na beira de uma piscina. Killian e Souza treinam polo aquático juntos. Hoje são também parceiros de negócios, pois o brasileiro deixou o M.D. Anderson para fundar a empresa Nano3D Biosciences, uma "startup" de biotecnologia.

Na origem, a pesquisa tinha por objetivo empregar os fagos como "táxis" para levar moléculas tóxicas diretamente até células tumorais. Na presença das nanopartículas de ouro, esses vírus filamentosos constituem uma matriz reticulada capaz de reter células em meio à trama.

As nanopartículas de ferro entram no coquetel para garantir a manipulação magnética do corpúsculo em crescimento. Num futuro distante, a técnica pode levar à construção de órgãos artificiais. No presente, Souza está de olho no milionário mercado de testes de toxicidade de novas drogas em tecidos humanos, exigência crucial para aprovar seu uso comercial.

O artigo na "Nature Nanotechnology" descreve o cultivo em levitação de células tumorais, que assumem formas globulares diversas sob manipulação do campo magnético. Na empresa Nano3D, Souza já trabalha com células saudáveis de pulmão.

"Por que pulmão?" -pergunta, retoricamente. "Porque podemos trazer as células para a interface ar-líquido [do meio de cultura], o que é um desafio para o teste "in vitro" de agentes [químicos] no meio aéreo." Ou seja, condições mais realistas para reproduzir o funcionamento do órgão.

A longo prazo, a Nano3D tem na mira presas mais graúdas: medicina regenerativa e engenharia de tecidos.

O plano de negócio é criar e comercializar o padrão da indústria em matéria de cultura celular, com o emprego de células-tronco.
A meta implica destronar matrizes sintéticas como Matrigel, dominante hoje nos laboratórios. A levitação magnética permitiria iniciar experimentos em minutos, diminuir o tempo de cultivo e eliminar o uso de produtos animais contaminantes.

(Folha de SP, 21/3)