A partícula méson-pi

quinta-feira, novembro 05, 2009

JC e-mail 3883, de 05 de Novembro de 2009.

18. A partícula méson-pi, artigo de Samantha Buglione

"A história científica do Brasil é minúscula, tal qual partículas subatômicas, mas coleciona alguns raros momentos de glória"

Samantha Buglione é professora de direito, bioética e do mestrado em gestão de políticas públicas da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Escreveu o artigo para o site "ClicRbs"

Há coisas que sabemos apenas de ouvir falar, mas já integram o nosso cotidiano, como as partículas subatômicas. O mundo das partículas é, sem sombra de dúvidas, sutil e efêmero, onde cada experiência é difícil de ser repetida e o olhar do observador interfere no experimento e no resultado. É preciso estar muito atento, pois o momento subatômico passa, e passa muito rápido.

A história científica do Brasil - se comparada ao que poderia ter sido e o que é efetivamente - também é minúscula, tal qual partículas subatômicas, mas coleciona alguns raros momentos de glória, devido, principalmente, ao esforço individual de algumas pessoas.

César Lattes foi uma delas. Ao participar de maneira pioneira da detecção e produção artificial de partículas subatômicas, trouxe contribuições importantes para a ciência. Talvez tenha sido a nossa melhor chance de Prêmio Nobel em razão da partícula méson-pi. Por conta da fama decorrente da descoberta (naquele tempo, celebridade era quem fazia algo útil), recebeu propostas irrecusáveis, inclusive da prestigiosa Universidade de Harvard, mas retornou ao Brasil, como ele mesmo diz, "por conta de algo esquisito chamado patriotismo".

Tinha a ideia de ajudar a construir um outro Brasil, menos atrasado do ponto de vista da ciência (talvez hoje citasse também a ética). Logo de chegada, o presidente da República disse que Lattes tinha feito um mau negócio ao voltar dos EUA, porque aqui não dava para fazer nada daquilo que ele estava acostumado.

A cada dia que passa, perdemos um evento único que poderia nos fazer melhor e nos colocamos - voluntariamente - na condição de "colônia de exploração de recursos naturais". Foi-se o longínquo tempo do pau-brasil, da borracha e da cana-de-açúcar. Pelo que vemos, nada é novo embaixo do céu, ao menos em terras tupiniquins.

Agora é a vez da soja, do Sus scrofa domesticus, do gado, do biodiesel, e, na lista de apostas, o pré-sal. A próxima batalha a ser perdida é a da biotecnologia e da preservação de recursos como a água. Apesar da nossa imensa biodiversidade, preferimos criar minas de fosfatos como a de Anitápolis - que vai acabar com a água, turismo e saúde - e criar boi na Mata Atlântica e Amazônia, isso para não citar outras pirotecnias que desenharam o futuro nada agradável.

César Lattes participou da criação da principal agência de fomento à pesquisa científica do país. Imaginem o que diria ao saber dessa realidade e o que o CNPq anda financiando. Por outro lado, ciência de verdade e com um viés ético tem sido sistematicamente rejeitada, por exemplo, os estudos de ética ambiental e animal. Qualquer pesquisa que discuta de maneira consistente o modelo de fazer ciência que insiste em usar animais em pesquisa não passa no crivo dos "doutos".

Ou, ainda, quem se proponha a questionar o conceito hegemônico de desenvolvimento terá poucas chances de ver seus projetos aprovados se não agradar a alguma multinacional. Há linhas bonitas, como as pesquisas de gênero, mas essas, igualmente, não irão permitir críticas aos conceitos previamente adotados pelo grupo do momento. Ao que tudo indica, nunca financiaram algo sobre ecofeminismo.

Alguém poderá dizer que "antes de pensar em ciência temos que alimentar nossas pobres famílias neste Brasil". Perguntem a qualquer pai ou mãe de família se eles abririam mão do seu "bolsa-qualquer-coisa" para que seu filho tenha acesso a uma educação de ponta e o país seja respeitado por seu valor científico. Ele até poderia cogitar um sim, mas diria não. Simplesmente porque tem TV e não é estúpido. Ele sabe que o dinheiro do seu autossacrifício iria parar no bolso de algum esperto de fardão, boas maneiras e bons amigos. Essa foi outra batalha que perdemos no decorrer do século 19 até meados do século 20: a promessa de que o Brasil era o país do futuro.

Ah... quem quiser saber o que é o Sus scrofa domesticus deve procurar na internet. Nesses tempos sombrios, está proibido usar algumas palavras. Pode-se falar de aborto, vegetarianismo, mal do governo, de tudo, menos daquilo que prejudica alguns interesses econômicos. Como disse Lex Luthor, o inimigo do Super Homem: "Liberdade de expressão é uma maravilha, desde que ninguém esteja ouvindo". Passamos, no Brasil, da ciência de Cesar Lattes, para a ficção científica de Lex Luthor com uma velocidade que lembra o mundo das partículas subatômicas. O resultado? Pão e circo.
(ClicRbs, 5/11)