A morte e a morte de Claude Lévi-Strauss (final), artigo de Roberto da Matta

quinta-feira, novembro 19, 2009

JC e-mail 3892, de 18 de Novembro de 2009.

24. A morte e a morte de Claude Lévi-Strauss (final), artigo de Roberto da Matta

"Penso que tem havido uma queda notável no padrão geral do campo acadêmico"

Roberto da Matta é antropólogo. Artigo publicado em "O Globo":

Nos meus delírios estruturais, eu penso que o "Strauss" deve ter tido algum peso para o estrondoso sucesso do estruturalismo, pois veio do compositor romântico Johann Strauss, que, na velha Viena, inventou a valsa. Um gênero musical que ia além dos ouvidos, conduzindo a dança frente a frente com a parceira, estilo considerado imoral pelo senso comum da época. Tal como ocorreu com os marxistas que situavam o estruturalismo por dois estalões negativos.

Ou era um suspiro formalista do espírito burguês (certamente o último); ou era "a miséria da razão" porque destituía o mundo social de um sujeito (as classes oprimidas ou a burguesia exploradora que fumava charuto), e colocava no seu lugar um hóspede não convidado: o "espírito humano" que, para a surpresa crescente do próprio Lévi-Strauss, vai ficando cada vez mais concreto na medida em que ele se abre às mitologias indígenas das Américas.

Aliás, mitologia, porque a história que contam é, no fundo ou na estrutura, uma mesma coisa: como juntar o que é separado e como separar o que está junto.

Morre o homem, sobra o mito a ser eventualmente reinterpretado. Ou - se eu conheço o mundinho acadêmico nacional e internacional - acerbamente disputado pelos que se julgam os seus legítimos herdeiros.

Eis um fato cruel da morte. Ela leva o Lévi Strauss capaz de dizer quem dele era o melhor ou o mais medíocre dos seus intérpretes (como foi o meu caso); mas fica um punhado de "Lévis", cada um deles correlato ao seu médium, naquilo que é um dos mais dolorosos e infames paradoxos da morte que pulveriza. Em vez do Strauss da valsa ou dos jeans que leva ao canto, à dança e ao uso, o Strauss da vida intelectual já começa a ser disputado, com a usual atenção aos estudiosos e discípulos estrangeiros do que aos nacionais.

Pago para ver... E já enxergo os que o jogam nas alturas de um herói civilizador como a onça, sol e lua, ou Maíra, e os que o tentam atirar no lixo "descobrindo", como faz um subsociólogo francês, que há uma "hierarquia do saber" e esquecendo que uma das chatices da vida intelectual é que a tal hierarquia não pertence apenas à tradição ou à bajulação que leva aos prêmios, às academias e aos cargos, mas ao fato concreto que há pessoas mais inteligentes que outras.

E como o intelectual - exceto em alguns lugares, como no Brasil - precisa produzir, é fácil distinguir quem traz luz ou nevoeiro a alguma questão.

A escrita como prova de honestidade, de ética e de agudeza mental é evidente. Penso que tem havido uma queda notável no padrão geral do campo acadêmico, mas eu ainda acredito no esclarecimento de uma questão pelo intelecto como um elemento fundamental do igualitarismo que constitui a academia.

Pois nada é mais meridiano do que verificar como um dado estudioso resolve um problema, como fez Lévi-Strauss com os sistemas de casamento, como totemismo e com os mitos.

A clareza da escrita e as teorias que resolvem problemas são a prova do pudim. Coisa aterradora num mundo intelectual onde o genial passou a ser quem escreve banalidades sobre coisas complexas (a globalização, por exemplo); ou escreve complicado sobre banalidades (dizer que vivemos em tempos de tribos, por exemplo). Eis um mundo do qual, penso eu, um velho e genial Lévi-Strauss se despediu sem problemas.

Em 1960, formou-se no Museu Nacional, sob a liderança intelectual de Roberto Cardoso de Oliveira e de seu comparsa, David Maybury-Lewis, da Harvard, um projeto para estudar comparativamente a organização social de alguns grupos tribais. Em 63-64, visitei Harvard pela primeira vez (perdendo o golpe militar) e, com meu amigo fraterno, Pierre Maranda, aprendi uma variante do estrutural-funcionalismo.

Um coquetel formado pela combinação das ideias de quatro excepcionais antropólogos britânicos: Evans Prirchard, Meyer Fortes, Max Gluckman e E. R. Leach - com as teorias de Lévi-Strauss. No Museu, começamos a escrever monografias sobre as sociedades que pesquisávamos, abandonando os batidos relatórios sobre situações de contato que, sem saber coisa alguma sobre as sociedades tribais, nada podiam dizer sobre o contato. O plano era tentar entender as sociedades indígenas "por dentro": na sua estrutura e por meio dela.

O compromisso político não foi abandonado, mas os trabalhos que tentavam traduzir humanidades desconhecidas a partir de suas próprias categorias tiveram uma recepção hostil por parte da visão indigenista vincada no evolucionismo vitoriano dominante, ao lado da concepção sertanista, dona dos índios por ela tomada como inocentes e também como primitivos da Idade da Pedra a serem protegidos, salvos e devidamente "civilizados".

Um evento desta fase foi o confronto que tive, em 1979, com um Darcy Ribeiro dono de um prestígio político avassalador. O resultado foi a tentativa de censura de um dos meus livros por uma editora devotada ao bem da Humanidade; e a aura, senão o ranço de reacionário, que até hoje me persegue.

A memória de um Lévi-Strauss que inspirou, fora da Universidade de São Paulo, uma mudança dramática no ensino e na prática da antropologia no Brasil e, posteriormente, contribuiu - ao lado dos trabalhos de Victor Turner, de Gilberto Freyre e de Louis Dumont - para as minhas interpretações do Brasil por meio dos seus rituais, rotinas e malandragens, pegando muitos de calças arriadas, deve ser também invocada.

Afinal, a morte, com sua implacável realidade, exige - mesmo num país de hipócritas, de mal-agradecidos, de gênios e de condescendentes - um pouco de verdade nua e crua.
(O Globo, 18/11)