Berço e criação

terça-feira, novembro 17, 2009

JC e-mail 3891, de 17 de Novembro de 2009.

20. Berço e criação, artigo de Marcelo Leite

"Determinismo genético saiu de moda na academia"

Marcelo Leite é jornalista e autor dos livros "Darwin" e "Ciência - Use com Cuidado". Artigo publicado na "Folha de SP":

Saí do berço ouvindo que quem herda não furta. Pode-se entender o provérbio em sentido jurídico, mas o contexto sempre apontava outra coisa: não é crime parecer-se com alguém. Algo como, para ficar nos provérbios, "quem puxa aos seus não degenera".

A biologia é obcecada com o sentido desse verbo, "herdar". Debate-se há séculos quanto de nossas disposições gerais, em especial de temperamento, são "causadas" por fatores herdados. Para muita gente, isso significa deixar de ter responsabilidade pelo que são, e até pelo que fazem.

A partir do século 20, o problema foi enquadrado na moldura dos genes. Começou-se a falar em genética do comportamento, da violência, da orientação sexual etc. Assim como o escorpião da fábula explicou ao sapo que ferroá-lo estava em sua natureza, há quem acredite safar-se alegando: "Está no meu DNA".

É a velha questão "nature X nurture", que traduzo livremente do inglês como berço X criação. A genética, turbinada pelo Projeto Genoma Humano, teria resolvido o dilema em favor do primeiro termo. Até os anos 1980, houve certo predomínio da psicologia (ambiente, ou criação), logo substituída por explicações "mais científicas", genéticas (natureza, ou berço).

Esse determinismo genético saiu de moda há anos, na intimidade do meio científico, mas tem apelo irresistível no público e é tolerado por pesquisadores. Caiu em desuso técnico porque é falacioso. Seu defeito está em confundir "genético" com "hereditário" ou "inato", pois nem tudo que afeta os genes ocorre antes do nascimento.

Mais um estudo que põe essa dicotomia em xeque foi publicado eletronicamente pelo periódico científico "Nature Neuroscience" na semana passada. Chris Murgatroyd, pesquisador do Instituto Max Planck de Psiquiatria, de Munique, mostrou que experiências traumatizantes na primeira infância podem deixar marcas duradouras na fisiologia e no comportamento que nada têm a ver com o conteúdo dos genes, mas sim com a expressão desse conteúdo.

É o que se chama de epigenética, anotações que a experiência vivida deixa no genoma. Elas sinalizam quais genes do acervo de mais de 20 mil podem e devem ser usados em cada circunstância. O grupo de Murgatroyd investigou em camundongos o efeito de estresse em filhotes separados da mãe três horas por dia nos primeiros dez dias de vida.

A equipe descobriu que, já adultos, os roedores estressados quando filhotes tinham níveis elevados de um hormônio, a vasopressina, associado com o humor e, em humanos, com a química da depressão. Viu, ainda, que esse aumento decorre de marcas indeléveis deixadas no DNA. É óbvio que o mecanismo pode não ser o mesmo em seres humanos, mas é difícil de acreditar que não haja coisas similares agindo dentro de nós. Somos o resultado não só do que está em nossos genes, mas também do que se superpõe a eles. Nem berço nem criação, mas berço-e-criação.

Essa visão menos determinista nos convida a investigar, ponderar e influir tanto no que está no DNA quanto no modo como criamos nossos filhos e jovens e como tratamos a nós próprios. Como já foi dito, somos o que fizermos do que fizeram de nós. Incrível: descobri no Google que o imortal Walter Franco tem uma música intitulada "Quem Puxa aos Seus Não Degenera". Nela se encontra a seguinte estrofe, que talvez nos inspire a ser mais tolerantes com as feras criadas por aí: "Daí meu pai disse / Meu filho, espera / A inocência que há / No olhar da fera".
(Folha de SP, 15/11)

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NOTA DESTE BLOGGER:

Interessante o artigo de Raymond Tallis, "Neurotrash", publicado no New Humanist, Volume 124 Issue 6 November/December 2009:

From ethics and art history to social policy experts are embracing neuroscience as the answer to understanding human behaviour. Raymond Tallis rallies the neurosceptics

Contemporary neuroscience is one of mankind’s greatest intellectual achievements. As a researcher for many years into new methods of rehabilitating people with neurological damage, in particular due to strokes, I have been thrilled by the promise of new technologies such as sophisticated brain scanning to help us to understand the processes of recovery and (more importantly) suggest treatments that would promote the kinds of reorganisation in the brain associated with return of function. In contrast, I am utterly dismayed by the claims made on behalf of neuroscience in areas outside those in which it has any kind of explanatory power; by the neuro-hype that is threatening to discredit its real achievements.

Hardly a day passes without yet another breathless declaration in the popular press about the relevance of neuroscientific findings to everyday life. The articles are usually accompanied by a picture of a brain scan in pixel-busting Technicolor and are frequently connected to references to new disciplines with the prefix “neuro-”. Neuro-jurisprudence, neuro-economics, neuro-aesthetics, neuro-theology are encroaching on what was previously the preserve of the humanities. Even philosophers – who should know better, being trained one hopes, in scepticism – have entered the field with the discipline of “Exp-phi” or experimental philosophy. Starry-eyed sages have embraced “neuro-ethics”, in which ethical principles are examined by using brain scans to determine people’s moral intuitions when they are asked to deliberate on the classic dilemmas. Benjamin Libet’s experiments on decisions to act and the work on mirror neurons (observed directly in monkeys but only inferred, and still contested, in humans) have been ludicrously over-interpreted to demonstrate respectively that our brains call the shots (and we do not have free will) and to point to a neural basis for empathy.
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